“Deus na escuridão”

Isto dito, do que mais gostei foi o que me pareceu ser genuíno (tanto quanto o possa ser o que se diz numa entrevista que tem por motivação o lançamento do livro): a posição não dogmática quanto à fé. 

Isto dito, do que mais gostei foi o que me pareceu ser genuíno (tanto quanto o possa ser o que se diz numa entrevista que tem por motivação o lançamento do livro): a posição não dogmática quanto à fé. 

“É muito importante que o livro seja uma lonjura de mim mesmo”

(Valter Hugo Mãe, entrevista ao “Observador”, 14 jan. 2024 [i])

 

Nunca tinha lido nada deste autor (o que só desabona a meu respeito, claro está – e é certo que poderia elencar neste “nunca” quase toda a gente que escreve…).

Nem sei dizer ao certo porque lhe peguei, no escaparate das novidades da “LER”. Julgo que o insólito do título sobre o rosa-shocking da capa (“Deus na escuridão” … com a Barbie!? fiquei intrigada).

Mas foi assim que tropecei, ao calhas, em: “Deus é exactamente como as mães. Liberta seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.”

Já não larguei mais este livro que descrevia Deus como sempre O imaginei – correndo a abraçar cada filho por mais que este, despeitado, Lhe tenha virado as costas – mas me dizia a mim também, mãe assim num poço de Jacó.

Li de um trago, deslumbrada, sôfrega, encandeada, da noite para o dia literalmente.

Há uma força telúrica na narrativa, como se o autor, feito deus criador ele mesmo, moldasse as personagens com os materiais piroclásticos da ilha e lhes soprasse vida, num falar autóctone que aprendemos como uma nova língua, por imersão.

O enredo apanha-nos de chofre, logo na primeira página, e vai prender-nos até à última. Mas ao mesmo tempo parece ser só um pretexto para nos transportar em corpo e alma às íngremes ladeiras do Campanário, donde se vê mais mar que terra em seu redor. (Quando há dias a conta oficial de Valter Hugo Mãe postou uma foto no instagram, reconheci o local antes sequer de ler a legenda.)

Há um ressoar quase bíblico na voz persuasiva do narrador, com quem aprendi o madeirense “bilhardar”, e um novo significado para verbos que julgava conhecer (“fabricar”, “vigiar”).

Fui procurar quem escreve assim. Topei claro está com superlativas manifestações de apreço à premiada obra, e o próprio autor desmultiplicado em entrevistas.

Abençoada ignorância que me trouxe assim ingénua, por casualidade, até este livro que “é decisivamente um dos que mais me faz sentir que, se não puder fazer mais nada, fiz o que me competia.”[ii] Depois deste, nem sei se quero ler outro, sobretudo se anterior.

Isto dito, do que mais gostei foi o que me pareceu ser genuíno (tanto quanto o possa ser o que se diz numa entrevista que tem por motivação o lançamento do livro): a posição não dogmática quanto à fé.

“Podia começar por dizer que, embora tenha dificuldade em acreditar em Deus, acredito em São Bento, o que significa que alguma coisa por aqui existe.”, diz, e ainda “A verdade é que racionalmente, se pensar acerca do assunto, não acredito em Deus; se não pensar acerca do assunto, acredito.”[iii]

Fez-me lembrar outra entrevista, no podcast da Raquel Marinho [iv], com Nuno Costa Santos, discorrendo sobre a mesma temática dos ilhéus (pessoas), também numa posição não categórica quanto à fé. Claro que são diferentes um do outro como o dia da noite. Mas é a comum humanidade de quem intui no comportamento alheio uma motivação para si incompreensível, mesmo indizível, o que mais me toca e ressoa – ainda que um fale do que aparentemente conhece (o ser ilhéu) outro do que lhe é lonjura: ambos se detêm na hora de negar categoricamente um transcendente que reconhecem como causa próxima dos gestos ou palavras de outros, mas que contudo a razão lhes recusa.

Felicíssimo e Pouquinho, Julinho e Mariinha dos Pardieiros e como “a casa de Deus precisa de obras porque espera que os filhos venham para ajudar”.

Sinto que “Deus na escuridão” vai ficar comigo por muito tempo.

[i] https://observador.pt/especiais/valter-hugo-mae-se-nao-puder-fazer-mais-nada-fiz-o-que-me-competia/?cache_bust=1706640782085
[ii] ibidem
[iii] ibidem
[iv] “O Poema Ensina a Cair”, podcast de Raquel Marinho, com Nuno Costa Santos, Junho 2023 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.