Tenho encontrado pessoas sós, mesmo rodeadas de muita gente. Aquela solidão de quem se busca, ou perdeu o encanto da procura. Também as que estão mesmo sós de gente.
Recordo um episódio já com alguns anos:
Um rapaz saiu da sala onde estávamos em actividade. Apercebi-me do sair brusco, com a densidade de quem se sente profunda e tristemente só. Sentou-se num banco do jardim sem ninguém. Há lágrimas que não podem ser públicas. Toda a vida ouviu: “homem que é homem não chora”. Nem se atrevia sequer ao direito de sentir raiva, ódio, diante do que se lhe apresentava como destino traçado da aparente insensibilidade. Sem esperar acabou por enfrentar esse engano, o mesmo que o queriam marcar a ferros no tal dito que fere e mata por dentro tantos homens. Acompanhei-o com o olhar. Lá, naquele banco, lia a proposta dada na actividade, acabando por ler-se a si mesmo. Enrolava-se de tanta emoção desperta com a actividade que, sem dar conta, gritou-lhe existência sem culpa. No rosto, misturava-se medo, vergonha, força… liberdade. Uma após outra, densas de tanto, as lágrimas caiam. Permitiu que me aproximasse. Nem uma só palavra entre os dois. Apenas a presença que desmascara a solidão.
Entre tantos outros, este é um episódio que me permitiu pensar nesse grande mal da sociedade contemporânea: a solidão. Por histórias antigas mal resolvidas, sem espaço nem tempo de escuta da sua dor, por abandono de familiares (ai, a velhice!), por perda de sonhos ou mesmo de tudo, são muitas as pessoas que vão-se arrastando e transformando em seres que apenas respiram. A solidão mata devagarinho: “Afinal, ninguém se importa por mim”.
Ninguém?
Deus cria o ser humano em relação, tanto divina como humana. A divina estabelece-se com a “imagem e semelhança” e a humana na complementaridade da diferença. “Não é bom que o homem esteja só”, diz-nos o texto do Génesis. Desde o início da criação que ficamos a saber da importância de Deus por cada ser. Por cada um de nós. A partir daí, nessa relação entre humanidade e divindade, apercebemo-nos como em todos os textos o pano de fundo é o de promoção de encontro, até ao culminar da encarnação. Jesus revela a profundidade do humano no seu melhor e desmascara o seu pior.
Nessa profundidade há oportunidade em perceber a diferença entre o “estar só” e a “solidão”. Jesus esteve muitos momentos só, em recolhimento, na escuta do Pai e de si mesmo. Ter momentos para mim mesmo é fundamental para o equilíbrio saudável na busca de identidade. O silêncio, eliminando ruído exterior e, aos poucos, interior, permite perceber a força da vida na nossa história. A sociedade contemporânea multiplica-se em comunicações, obrigando a estar sempre contactável. Daí que a opção “modo de voo” ou mesmo “desligar”, seja de se considerar nesse estar só necessário ao reconhecimento de quem sou. E pode ser um quem sou que atravessa uma fase de grito, de escuro, que, pouco-a-pouco, envolve-se de solidão, ao jeito de uma noite de Quinta-feira Santa em que Jesus é abandonado por todos. Jesus vive a solidão, desmascarando a humanidade que é capaz de abandonar e negar o próximo. Jesus, na sua morte, grita ao Pai, em toda a autenticidade. E o Pai, tal como em tempos ouviu o clamor do Povo, escuta Jesus e continua a escutar os nossos clamores. Será que nos dirigimos realmente a Deus?
A solidão na sociedade contemporânea tem grande dose de solidão de Deus. Em nome do poderio da intelectualidade, elevando o ser humano a Deus, a religião foi renegada para o interior da caserna, catalogada de antiguidade e conservadorismo. No entanto, o estudo e a interpretação actualizada dos textos divinos mostram-nos como a religião, bem vivida e não adulterada pelo poder, é sinal de esperança e de paz, tanto pessoais como comunitárias. O crescendo de vendas de livros de espiritualidade e sobre silêncio, como o aumento na procura de retiros, são sinal de desejo de encontro maior de cada qual consigo mesmo. Antes da procura de quem é Deus, há a vontade de se conhecer a si mesmo. “Connaître”, em francês, significa “Conhecer”.
É interessante perceber que, traduzindo à letra, o conhecimento seja entendido como um “co-nascimento”, um “nascer-com”. Vai daí que isto de sermos humanos, ou pelo menos irmos tentando sê-lo, implica um renascer aliado à sabedoria de vida. Somos estimulados à busca, à interrogação que não nos deixe ficar estagnados no já adquirido. A nova experiência de vida ou o novo conhecimento permitem um renascer da nossa visão em relação ao mundo, a nós próprios e a Deus. Essa visão poderá ser mais positiva ou mais negativa conforme o modo como lidamos com a experiência. Podemos ficar agarrados à dor, ao contentamento, à doença ou à alegria, sem fazer o caminho que leva à profundidade e ao passo maior de encontro comigo mesmo, com o meu próximo e com Deus.
Na solidão entramos no escuro do desconhecido, do apagamento da própria vontade, entrando no mecânico dos acontecimentos da vida. Enfrentar a solidão, implica o enfrentar-me a mim mesmo, em luzes e sombras, permitindo-me voltar a ver-me como sujeito e não como objecto de medos ou de imposições de imagens sociais de modos de ser. E para esse ver-me como pessoa é necessário ajuda na resposta ao convite, tal como Jesus fez a Nicodemos durante a noite, de nascer de novo.
A relação, como já vimos, está-nos inscrita na existência. A relação dá-nos força de conjunto, também na vulnerabilidade, na fraqueza, no isolamento. O grande engano é que podemos tudo sozinhos. Que bom que se educa na liberdade e na autonomia. Que bom que se eduque também na colaboração. Enfrentar a solidão tem dose de individualidade, junto com a de comunidade. No entanto, não pode ser uma comunidade que abafe ainda mais quem está só. Nem todas as pessoas estão preparadas para ajudar na libertação da solidão. Se é necessária a humildade no pedido de ajuda, é importante que do outro lado a haja também no dizer sim a partir da real capacidade de ajuda: alguém que realmente pode escutar ou, então, a também importante ajuda de buscar alguém que realmente pode escutar quem está em solidão.
A discrição, a confidencialidade, o respeito, a compreensão, a compaixão e a empatia são requisitos para escutar a solidão do outro. No fundo, é ajudar a pessoa a atravessar a sua dor com toda a autenticidade, sem moralismos apressados e respostas imediatas cheias de vazio. Escutar e orientar o outro é guiá-lo através dos caminhos da esperança. Por vezes, os passos são pequenos, quase imperceptíveis, outras há correria, onde o passo se abranda novamente. O importante, ao jeito de peregrinação com sol e chuva, calor e frio, é deixar-se atravessar de esperança, ou seja, de sentido. A solidão reveste-se de desespero. Em caminho de liberdade dessas ligaduras, tal como Lázaro ao sair da escuridão para a luz, a esperança devolve o sentido da existência. A solidão atravessada e curada converte-se em vida renovada e profundamente amada na autenticidade de quem se é.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.