Portugal e a Flandres
Apesar de se conhecerem relatos de portugueses na Flandres logo no início do século XII, é a partir dos finais do século XIV que a presença lusa e as relações comerciais com este complexo de diversos estados sob o domínio da Casa de Borgonha se intensificam. Contribuíram para a construção das feitorias de Bruges e Antuérpia as mercês mercantis concedidas a Portugal, a 26 de Dezembro de 1411, em prejuízo de outras nações, como a inglesa e francesa, e o casamento de Isabel, filha de D. João I de Portugal, com Filipe III de Borgonha, em 1430.
Entre outros, estes acontecimentos vieram a robustecer uma relação que já desde os inícios da portugalidade existia, tendo em conta que D. Afonso Henriques não só era filho e sogro de borgonheses, como fora ajudado pelos Cruzados na conquista de cidades mouras, como Lisboa. De cá, enchiam as naus vinho, óleo, frutos como figos e passas, cortiça, madeira de Teixo das ilhas da Madeira, marfim de África, entre outros bens de aquém e de além-mar. De lá, chegavam-nos metais, material bélico, têxteis, mobiliário, livros de horas, pergaminho, mas também obras de arte e até mesmo artistas.
Arte flamenga em Portugal
A arte flamenga era alvo de imenso prestígio durante os séculos XV e XVI e Portugal vivia uma época áurea que lhe possibilitou a aquisição de inúmeros objectos artísticos, assim como a contratação de artistas do Norte da Europa (e também o envio de artistas nacionais para lá aprenderem). O arquipélago da Madeira, devido à riqueza provinda do cultivo do açúcar, tornou-se um pólo crucial no mercado artístico com Flandres, mas coube a todo o país a difusão da arte flamenga por África, pela Ásia e pelo Brasil. Serviamo-nos dela maioritariamente como presentes diplomáticos, como objectos de culto e ornamentação em igrejas que erigíamos, como instrumentos de catequização ou de devoção pessoal. Pela sua abstracção em relação à materialidade e a sua ligação mais directa com as artes liberais, a pintura foi desde logo a forma de arte mais apreciada e conceituada, seguindo- se as tapeçarias que fascinavam pela sua complexidade ostensiva e pela sua dimensão e utilidade em manter os espaços mais aquecidos e acolhedores (por muito que não sofrêssemos de temperaturas tão baixas como as zonas de onde provinham), os maravilhosos e práticos livros de horas iluminados e, incontornavelmente, a escultura.
A arte flamenga era alvo de imenso prestígio durante os séculos XV e XVI e Portugal vivia uma época áurea que lhe possibilitou a aquisição de inúmeros objectos artísticos, assim como a contratação de artistas do Norte da Europa (e também o envio de artistas nacionais para lá aprenderem).
A pintura flamenga está hoje maioritariamente espalhada por muitas igrejas e museus do nosso país. A sua qualidade fez-se notar e muitas foram as obras importadas para terras lusas, destacando-se o enorme políptico de autoria desconhecida que decora a capela-mor da Sé de Évora e um tríptico para o Convento de Santa Clara, em Coimbra, que, juntamente com o retábulo do Convento de Xabregas e outras obras, foram executados por Quentin Metsys (1466-1530), aquele que mais pintura exportou para Portugal, muito provavelmente por, além do seu talento, ter a sua oficina na mesma cidade para a qual, em 1499, foi transferida a nossa feitoria (de Bruges para Antuérpia).
Francisco Henriques (act. 1503-1518), Frei Carlos (?-1540) e aquele que ficou conhecido como o Mestre da Lourinhã (séc. XVI) são três nomes da escola luso-flamenga que também não poderemos ignorar. Os tecidos e tapeçarias serviam muitas vezes como moeda de troca, por isso os portugueses faziam-se acompanhar deles nas suas viagens, para conseguirem especiarias, diversos metais, ou outros produtos exóticos.
A confecção complexa das tapeçarias e a sua capacidade decorativa tornava-as objectos de riqueza. Logo, realeza e nobreza portuguesas serviam-se delas para ostentarem o seu poder, decorando os espaços onde se encontrassem, ou para oferecer a outros altos cargos com que se relacionassem nas suas viagens, levando assim as tapeçarias de Flandres até distintos extremos do planeta. Tinham igualmente uma eficaz capacidade instrutiva, no sentido em que poderiam narrar histórias através do que nelas se representava: para além das tapeçarias decoradas apenas com motivos vegetalistas, podemos encontrar também cenas religiosas, mitológicas ou históricas. Incontornáveis são, entre outras, as que contam as conquistas de Arzila e Tânger, que hoje estão na igreja colegiada da vila manchega de Pastrana, tendo sido encomendadas por D. Afonso V ou pelo seu filho, o futuro D. João II; ou as que contam a viagem de Vasco da Gama à Índia, que originalmente estavam nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, e que foram encomendadas por D. Manuel I.
Os livros iluminados e os livros religiosos
Também a produção de livros iluminados foi alvo de muita popularidade, tendo em conta a riqueza que essa decoração atribuía aos códices e, consequentemente, aos seus encomendadores. Entre outros, destacaram-se nesta arte os iluminadores Simão Bening (1483-1561) e António de Holanda (1480-1557). As iluminuras, tal como aconteceu principalmente com as gravuras, vieram a servir muitas vezes de inspiração ou modelo para outras obras, como pinturas e relevos.
Os livros religiosos, como são exemplo o Livro de Horas de D. Duarte, o Livro de Horas de D. Manuel ou o Breviário Mayer, foram muito requisitados nesta época, provavelmente pela influência que a Devotio Moderna estava a ter na vida espiritual das pessoas. Este movimento — que daria origem à fundamental obra Imitação de Cristo, atribuída a Tomás de Kempis (1380-1471) — teve origem nos Países Baixos dos finais do século XIV, através da criação dos Irmãos e Irmãs da Vida Comum, liderados por Gerard Groote (1340-1384). Como reacção à crise moral e espiritual vivida na Igreja, numa época de crise económica e financeira, este movimento propôs uma revivência das doutrinas de Santo Agostinho e um intenso estudo das Sagradas Escrituras e textos dos Padres da Igreja, um recentramento nos dons da pobreza, humildade e abnegação, assim como na vida de trabalho, oração e autoconhecimento.
Esta proposta, polémica para a sua altura, desafiava a um aumento de individualidade e de relação pessoal com Deus na oração de cada crente. Esta mudança de paradigma teve uma enorme influência na produção artística,
Esta proposta, polémica para a sua altura, desafiava a um aumento de individualidade e de relação pessoal com Deus na oração de cada crente. Esta mudança de paradigma teve uma enorme influência na produção artística, especialmente na elaboração de livros de horas e breviários, uma vez que, através dos seus textos e da sua portabilidade, permitiam e ajudavam a uma oração individual mais frequente e melhor orientada. Da mesma forma, também a escultura veio ajudar a responder a esta necessidade de oração particular, no sentido em que a imaginária de pequena dimensão era facilmente adquirida, transportada e colocada em oratórios (de nobres, burgueses ou dentro de mosteiros) particulares, muitos deles já previamente enriquecidos com pinturas; e as de maior dimensão em capelas laterais de igrejas, possibilitando diversas invocações.
A importância das esculturas
Numa época de crescentes e prolíferas relações comerciais entre distantes territórios, Antuérpia, Malines e Bruxelas tornaram-se os grandes centros de produção escultórica ao saberem responder à necessidade de resposta que a crescente avidez de novidade e de peças luxuosas exigiu. Apesar da produção em série, a qualidade das peças brabantinas era respeitada, confirmada e marcada (uma mão para Antuérpia, três palas para Malines e um martelo para Bruxelas, havendo ainda outras marcas para a policromia ou para a qualidade do ouro) por um júri, contribuindo assim para a preservação da sua louvável reputação.
A época manuelina veio contrastar, através do incentivo ao consumo destes bens requintados, com as rígidas leis pragmáticas impostas pela primeira vez por D. João II em 1417, que restringiam o excesso de ostentação de objectos de luxo. Os retábulos nos quais as cidades de Antuérpia e Bruxelas se especializavam tornaram-se bastante populares, mas foram as esculturas de Nossa Senhora e, principalmente, as do Menino Jesus de Malines que foram mais requisitados, como podemos confirmar pela quantidade de esculturas que chegaram até aos nossos dias. Foi relativamente comum bordarem-se vestidos para os “Menino Jesus” e construírem-se umas espécies de oratórios ornamentados e decorados com flores e outros elementos, conhecidos como “jardins clos”.
Este tipo de escultura recebeu e provocou uma grande influência estilística, não só porque surge numa época de proliferação dos putti italianos, mas também porque acabará por influenciar a arte lusíada, como podemos comprovar nos “Menino Jesus” de vertente indo-portuguesa. A peça aqui em questão, visível na Casa-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa, ainda não permitiu uma atribuição incontestável a um centro de produção, uma vez que não apresenta nenhuma marca, nem sofreu até hoje nenhum exame pericial. Contudo, apresenta certas características que anulam praticamente na íntegra qualquer dúvida sobre a sua origem flamenga. Apesar da expressão doce e meditativa dos “Menino Jesus” de Malines serem a que mais rapidamente associamos à escultura flamenga, esta “Deposição no túmulo” porta em si expressões de um sofrimento vincado, cujo detalhe, juntamente com a dinâmica e o estilo dos panejamentos, são igualmente características típicas da arte flamenga.
“Apesar da expressão doce e meditativa dos “Menino Jesus” de Malines serem a que mais rapidamente associamos à escultura flamenga, esta “Deposição no túmulo” porta em si expressões de um sofrimento vincado, cujo detalhe, juntamente com a dinâmica e o estilo dos panejamentos, são igualmente características típicas da arte flamenga.”
Neste retábulo em madeira entalhada e com vestígios de dourado e de policromia, apresenta-se a deposição de Cristo morto no túmulo, cena comum tanto ao ciclo da Paixão de Cristo como ao das Sete Dores de Maria, havendo então que considerar a hipótese de esta escultura ter pertencido a um retábulo de maior dimensão, entre mais episódios cristãos. Encontram-se retratadas as personagens incontornáveis desta cena: além de Jesus, agressivamente ferido pela crucificação, no plano central, vemos, no plano posterior, Nossa Senhora, de expressão angustiada e olhos fixos no seu Filho. Leva as mãos ao peito, sendo amparada por São João Evangelista. Santa Maria Madalena, ajoelhada no plano anterior, observa penosamente a expressão apagada de Jesus, segurando-lhe o braço que descai do sudário.
Duas figuras masculinas limitam o comprimento da obra: Nicodemos (fariseu e defensor de Jesus perante o Sinédrio) segurando a parte do sudário que sustenta os pés de Jesus, e José de Arimateia (membro do Sinédrio e seguidor de Jesus) segurando a parte que apoia a cabeça. Este último era o proprietário tanto do sudário como do túmulo.
A eloquência dos panejamentos e a dinâmica suscitada pelos drapeados que compõem os trajes das personagens esculpidas é indubitavelmente uma característica fascinante da arte flamenga. É interessante notar, contudo, como, neste caso, a sua origem flamenga é ainda mais óbvia através das escolhas desses próprios trajes, revelando até a sua encomenda em contexto social elevado. Em oposição às roupas simples e despojadas de Maria e São João, Santa Maria Madalena, José de Arimateia e Nicodemos assumem trajes flamengos do século XVI. A personagem feminina exibe um vestido elaborado, um colar sobre o decote, e um chapéu, chamado hennin, coberto de pedras preciosas, reforçando assim a sua condição de mulher terrena, em oposição a Nossa Senhora.
Atentemos, em seguida, na escolha para a roupa das duas personagens masculinas: ambos ostentam uma túnica comprida, manto, chinelos em bico, chamados escarpins (visível apenas um em Nicodemos) e chapéu à bourguignone (à borgonhês), um chapéu indicado para o frio da Europa do Norte, pelas suas abas largas e cachecol incorporado, com o qual o nosso Infante D. Henrique costuma ser retratado. Esta peça da colecção Medeiros e Almeida ajuda-nos a concluir o quão curioso e interessante é reconhecer as influências que as obras de arte guardam em si. Esta “Deposição no túmulo” é um óptimo exemplo para perceber como o artista usou daquilo que conhecia para expressar aquilo que queria. Ademais, é uma obra de arte que merece uma incontornável visita, pelo facto de ser um magnífico exemplo do trabalho minucioso e da consequente beleza que grande parte das esculturas flamengas revelam, justificando imediatamente a enorme quantidade de encomendas feitas pelos portugueses às oficinas da Flandres.
Informações úteis:
Onde encontrar esta peça? : Casa Museu Medeiros de Almeida
Localização: Rua Rosa Araújo, n.º 41 – 1250-194 LISBOA (Mapa Google)
Horário: 2ª feira a sábado: 10h – 17h (entrada até às 16h30)
Contacto: 213 547 892 / [email protected]
Como chegar? Consulte as informações do site
Preços:
Bilhete Normal: 5 €
Bilhete Sénior: 3 € – Maiores de 65 anos
Bilhete Criança/Jovem: GRATUITO – Até 18 anos – inclusive
Bilhete Manhã Sábado: GRATUITO
Este artigo será publicado no Caderno Cultural da revista Brotéria setembro/outubro de 2018.
Bibliografia
Da Flandres e do Oriente – Escultura Importada. Lisboa: Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, 2002;
O Brilho do Norte – Escultura e Escultores do Norte da Europa em Portugal – Época Manuelina.
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997;
MAYER, Maria de Lima. “Deposição no túmulo” in http://www.casamuseumedeirosealmeida.pt/pecas/deposicao (último acesso: 15 de Junho de 2018, 14:28);
MÓNICA, Isabel Maria, “A importância da Imitação de Cristo de Tomás de Kempis para a construção da ideia de “Indiferença” nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola”. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Letras, 2017.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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