Cinco visões da nova cúpula do Parlamento alemão

Dia 23 houve mais umas “snap-elections” na Europa. Depois de 2024 ter tido eleições antecipadas em Inglaterra, França ou Portugal, em 2025 começámos pela Alemanha, com resultados que importa analisar, olhando para o seu icónico Parlamento.

Dia 23 houve mais umas “snap-elections” na Europa. Depois de 2024 ter tido eleições antecipadas em Inglaterra, França ou Portugal, em 2025 começámos pela Alemanha, com resultados que importa analisar, olhando para o seu icónico Parlamento.

O famoso parlamento federal da Alemanha (Bundestag) está instalado num dos mais fascinantes edifícios políticos do mundo, principalmente devido à sua cúpula, redesenhada pelo arquiteto Norman Foster para a reconstrução, depois da reunificação alemã e da transferência do governo de Bona para Berlim. Resultou de uma longa e cuidadosa obra que acompanhou a reconstrução da Alemanha ao longo dos anos noventa (desde a queda do muro até à reinauguração do Parlamento em abril de 1999).

Este Bundestag é, no novo século, um espaço privilegiado para “ver” o interior de um parlamento, “ver” como se discutem e fazem leis e tomam decisões, “ver” a eficiência energética, a transparência das instituições e pretende ser um elemento simbólico do que é o centro da democracia parlamentar, permitindo ao povo, na parte superior, “ver” que todos os assuntos são levados com claridade (como refere a página de internet em que qualquer um pode marcar uma visita para “ver” também ali uma fabulosa vista panorâmica da cidade de Berlim). Imagino-me novamente a dar a volta a essa cúpula, metaforicamente, para olhar para os resultados eleitorais de 23 de fevereiro, na primeira grande eleição europeia de 2025. Tal como na cúpula verdadeira, podemos subir em espiral e “ver” água da chuva ser recolhida e utilizada para o funcionamento da estrutura, “ver”, em vários patamares, diferentes objetos de análise. Sugiro cinco, ainda a quente:

Uma visão-síntese dos resultados eleitorais
Na noite de domingo, as sondagens acertaram e confirmou-se o regresso da União Democrata-Cristã (CDU) e a União Social-Cristã (CSU) da Baviera ao poder, depois de quatro anos afastados, antecipando-se que o seu líder, Friedrich Merz, seja eleito, em breve, como próximo chanceler da Alemanha.

Verificaram-se também as previsões de aumento de força dos extremos, em especial da extrema-direita – a AfD (Alternativa para a Alemanha) foi quem mais cresceu nas intenções de voto face a 2021, passando de 10,4% para cerca de 20,8% e saltando para segunda força política no Bundestag-, mas, também, à esquerda, o Die Linke superou as baixas expectativas que resultavam de sondagens em janeiro na ordem dos 4,5 % (abaixo dos 5% necessários para “entrar” no Parlamento alemão, que exige essa barreira mínima para que se elejam deputados) e quase chegou aos 9%, deixando para trás deputados dissidentes.

E acertou, ainda, quem antecipou as grandes quedas eleitorais para os três partidos que lideravam o governo, com o SPD (sociais-democratas que equivalem aos nossos socialistas), os Grüne (Os Verdes) e o FDP (os Liberais) a serem fortemente penalizados: o SPD caiu para a terceira posição entre as bancadas parlamentares (o que aconteceu a última vez em 1887!) e teve o pior resultado em mais de um século (mesmo nos anos 30, antes da ascensão nazi, estavam mais perto dos 20%, acima dos 16,4% de 2025); os Verdes caíram também para quarto (a AfD ultrapassou-os também) e perderam um quarto dos seus votos; e os Liberais foram “expulsos” do Parlamento, com 4,3%, ficando a 0,7% da fasquia que referimos acima.

Devido à “regra dos 5%”, este não é um parlamento fragmentado, como o francês, a que se chegou no verão de 2024, ou o português, a que se chegou na primavera, mas assemelha-se, num aspeto essencial: o enfraquecimento do centro.

Devido à “regra dos 5%”, este não é um parlamento fragmentado, como o francês, a que se chegou no verão de 2024, ou o português, a que se chegou na primavera, mas assemelha-se, num aspeto essencial: o enfraquecimento do centro. Ao longo das últimas décadas, a Alemanha foi governada tradicionalmente por uma “Grande Coligação”, alternando a liderança entre a CDU/CSU e o SPD. Ora, a soma destes partidos é, hoje, um estilhaço dos grandes resultados que chegaram a permitir a estes partidos governar apenas com outros menores. Já não temos aqui o 1.º e o 2.º, há uns vidros da cúpula partidos gravemente pelas pedras que representa o salto de 10 para 20% da extrema-direita e a “Grande Coligação” encolheu.

Também à esquerda há estilhaços no SPD, partido que terá de se reinventar dentro de uma coligação inevitável para manter a AfD afastada do poder, enquanto é ameaçado por críticas do Die Linke, partido que, ele próprio, se estilhaçou por dentro, nascendo um outro partido de extrema-esquerda, liderado pela deputada Sahra Wagenknecht, que ficou a centésimas de entrar no parlamento, com 4,97% dos votos (!), ainda mais perto dos Liberais. No entanto, o Die Linke, que muitos pensaram estar condenado, fez uma excelente campanha, resistiu à cisão e venceu nas camadas mais jovens e na cidade de Berlim, tendo, como a AfD, conseguido compreender os mecanismos de campanha através das redes sociais.

Tudo resumido, ficámos com cinco partidos no Bundestag, com uma ordem nova: 1) CDU/CSU (com 22,6%); 2) AfD (com 20,8%); 3) SPD (com 16,4%), 4) os Verdes (com 11,6%); e 5) o Die Linke (com 8,8%).

O que mais impressiona é a aproximação da AfD ao “topo da cúpula”, ficando a menos de 2% de ser o partido mais votado da Alemanha, no ano em que celebramos os oitenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial que implicou a fragmentação e divisão daquele país e uma reconstrução que, apesar de tudo, ainda é recente, havendo ainda feridas à superfície, que muitos acreditavam servir para manter os extremos mais afastados.

O que mais impressiona é a aproximação da AfD ao “topo da cúpula”, ficando a menos de 2% de ser o partido mais votado da Alemanha, no ano em que celebramos os oitenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial que implicou a fragmentação e divisão daquele país e uma reconstrução que, apesar de tudo, ainda é recente, havendo ainda feridas à superfície, que muitos acreditavam servir para manter os extremos mais afastados.

Na Alemanha sofreu-se a Guerra Mundial, ainda havendo prédios em Berlim marcados por balas para “guardar memória”, e uma Guerra Fria até há relativamente pouco tempo, com um muro que atravessou Berlim, ali bem perto daquela cúpula. A História podia, devia, proteger…

2) Uma visão de fora da cúpula e do seu passado
Este Bundestag que agora irá receber um número recorde de deputados de extrema-direita é um dos edifícios mais fascinantes do mundo, não só por acolher o maior número de representantes para um país, como pela sua arquitetura invulgar, que condensa História e Futuro, simbolismo e tradição.

Situado em Berlim, junto ao icónico Portão de Brandemburgo, o Reichstag é o palácio-morada do Parlamento alemão. Pouco mais de cem anos antes da “reunificação da Alemanha”, houve uma unificação da Alemanha e um primeiro Imperador. Em 1884, o Kaiser Guilherme I lançou a sua primeira pedra fundamental e, em 1894, foi concluída a construção. Foi o parlamento de Frederico III e de Guilherme II até ao fim da monarquia, tendo a República de Weimar sido proclamada da sua varanda a 9 de novembro de 1918, continuando a ser a sede do Parlamento até 1933.

Nesse mesmo ano, outro evento histórico e determinante aconteceu no Reichstag. Em fevereiro, apenas um mês depois da nomeação de Adolf Hitler para o cargo de Chanceler, o Palácio foi incendiado. Segundo várias investigações, o fogo terá tido início em vários locais diferentes. No local, foi encontrado Marinus van der Lubbe, um conhecido “agitador” comunista que, de acordo com a polícia (já afeta ao regime) terá confessado ter ateado o fogo como forma de protesto contra o crescente poder do partido nacional-socialista. Adolf Hitler e Hermann Göring, através de propaganda e outros meios, divulgaram e reforçaram a tese de que o incêndio foi responsabilidade de todo o partido comunista e dos seus dirigentes. Assim, Hitler, que se foi aproveitando da situação, declarou um estado de emergência e pediu ao então presidente Paul Von Hindenburg que assinasse o “Decreto do Incêndio do Reichstag”, que suspendeu a maior parte dos direitos humanos consagrados na Constituição de 1919 da República de Weimar.

Contra o que muitos pensam e se defende, as sessões parlamentares que se realizaram durante o Terceiro Reich, entre 1933 e 1945, não se realizaram no Reichstag, que esteve em obras de reconstrução após o incêndio e teve principalmente utilizações militares durante a Guerra, acabando por ser novamente danificado por ataques aéreos, sendo um dos principais alvos da Batalha de Berlim de 1945. Assim, e paradoxalmente, não ficou “manchado” como lugar de produção política e jurídica do regime nazi, que, parlamentarmente, funcionou essencialmente a partir do edifício Krolloper, uma antiga casa de ópera. O palácio destruído ficou protegido da destruição monstruosa de um dos mais perversos regimes da História.

Depois da Segunda Guerra Mundial, restavam ruínas que acabaram a ser um dos melhores símbolos do que é renascer das cinzas, seja em termos de arquitetura, de engenharia ou de democracia.

Depois da Segunda Guerra Mundial, restavam ruínas que acabaram a ser um dos melhores símbolos do que é renascer das cinzas, seja em termos de arquitetura, de engenharia ou de democracia.

Inicialmente, a Alemanha dividida em duas partes, ocidental e oriental, passou a ter uma capital, ocidental, com sede em Bona, desde 1949. Decidiu-se reconstruir o edifício em 1956, mas não tardou a começar a Guerra Fria que implicou a construção de um muro que dividiu a cidade de Berlim e começou a ser construído no mesmo ano em que começou a reconstrução do Bundestag que passaria a estar a menos metros do muro que do famoso Portão da Cidade, encimado por uma quadriga, encomendado pelo Kaiser Guilherme II (também destruído durante a Guerra, apenas reconstruído em 2000, mas mantendo o estilo neoclássico).

Até à reunificação da Alemanha foi apenas usado para exposições ou eventos irregulares, sendo, no entanto, o local escolhido para cerimónia oficial da Reunificação Alemã que se realizou-se a 3 de outubro de 1990 no Reichstag. O parlamento alemão reuniu-se simbolicamente no palácio no dia seguinte, mas ainda passaria uma década para que voltasse a ter permanentemente essas funções (em 1995, o edifício foi inteiramente coberto por um casal de artistas, numa “instalação” que atraiu milhares de visitantes). Depois da sua reinauguração, em 1999, a cúpula de Foster que reinventava a cúpula original, com funções sustentáveis, permitindo dar energia e água ao edifício, com simbolismo e permitindo a visita, sendo possível subir e rodar vendo o interior do Parlamento e a cidade de Berlim, atraiu milhões de visitantes até hoje, sendo uma das atrações da cidade e um ícone mundial.

É uma cúpula com enorme simbolismo e muitas janelas que permitem ver para dentro do Parlamento, para fora e para a cidade, mas também para o sistema, podendo ser útil explicar uma imagem de janela muito útil em ciência política.

3) Uma visão à janela da cúpula (e a janela de Overton)
Tendo percorrido um pouco da História da Alemanha ao longo dos 141 anos do Reichstag, que penso que nos permitem perceber, por um lado, o quão perto e próximos estamos daquele regime que usou um incêndio no Parlamento para suprimir direitos humanos e quão frágil é a democracia, que se pode estilhaçar numa sequência de eventos rápidos que mudam o discurso e opinião pública, gostava de recorrer a uma outra figura que vi ser utilizada recentemente numa série socio-política que muito recomendo – La Fièvre: o Escândalo (6 episódios disponíveis, em Portugal, nos Canais TVCine, desde janeiro).

Esta série trata de vários temas, mas, uma “spin doctor” (ou consultora de comunicação) explica, a dado momento, o que é a “Janela de Overton”, ou a “janela do discurso”, que descreve a gama de ideias toleradas no discurso público.

Foi Joseph P. Overton, ex-vice-presidente do Centro de Políticas Públicas de Mackinac, no Michigan, nos Estados Unidos da América que, ao descrever esta janela, explicou que a viabilidade política de uma ideia depende principalmente do facto de cada ideia caber dentro da janela ou não, em vez das próprias preferências individuais dos políticos, que só podem agir dentro do que a comunidade aceita ou não, numa escala de vontades (quer mesmo – e é lei – ou não quer de todo e é tabu). Dentro dessa janela há uma escala/diferentes de degraus de políticas que são consideradas politicamente aceitáveis no clima da opinião pública, que um político pode recomendar sem ser considerado excessivamente extremo para obter ou manter cargos públicos e fora da janela estão temas inaceitáveis. A janela vai desde o que é concebível, nas suas bordas, até ao que é obrigatório, no centro (pode ser desenhada de maneiras diferentes).

A viabilidade política de uma ideia depende principalmente do facto de cada ideia caber dentro da janela ou não, em vez das próprias preferências individuais dos políticos, que só podem agir dentro do que a comunidade aceita ou não, numa escala de vontades (quer mesmo – e é lei – ou não quer de todo e é tabu).

Esta imagem é útil para verificar, por exemplo, que tipos de posições ou opiniões são aceitáveis para determinada sociedade ou comunidade em cada momento. Podemos discutir o canibalismo? E o direito ao porte de armas? E a proibição de determinado discurso? O que é que é tabu, impensável, radical, aceitável, sensato, popular, política, lei?

E se estivermos no avião caído nos Andes, e o que restar para sobreviver forem corpos humanos de vítimas de um acidente, a nossa visão sobre o canibalismo muda? E se tivermos presenciado um tiroteio na nossa escola ou local de emprego, a visão sobre o porte de armas, como fica? E se tivermos os nossos posts censurados numa rede social, repetidamente, por publicarmos ideias controvertidas?

Para analisarmos e compreendermos as várias posições, perceber aonde se encaixa uma ideia em cada momento é muito útil. Para moldar a opinião da sociedade, ainda mais.

Olhando a partir da janela de Overton para as eleições alemãs podemos ver o “cordão sanitário” (Brandmauer, na expressão alemão) que, nos países europeus mais próximos de Portugal, se tem traçado contra a extrema-direita: em Portugal, “o não é não”; em França, Macron vai apresentando primeiros-ministros centristas e, com várias coligações, vão tentando manter os Le Pen afastados do poder e das decisões; na Áustria, uma coligação de três partidos com muito pouco em comum juntou-se para manter um partido de extrema-direita, vencedor (!), afastado da liderança do governo.

Há ideias antes consideradas mais radicais sobre as migrações que os líderes do centro-direita à esquerda dinamarquesa hoje aceitam e defendem e vão incorporando no discurso.

Sem querer, enquanto discutimos, entram na cúpula, adota-se e aceita-se o discurso e as preocupações dos partidos mais extremistas. Da economia com pressões inflacionistas às tensões migratórias, do desgaste dos incumbentes, cansados dos anos de pandemia, está a abrir-se espaço a 1/5 ou mais dos parlamentos serem dominados pela extrema-direita e, potencialmente, à extrema-esquerda, outro tanto, alimentando-se as forças na polarização.

4) Uma visão das forças dentro da cúpula
Tentando ver à volta e para fora da cúpula, a tensão de forças é muito diferente. Na cidade de Berlim, o Die Linke teve resultados impressionantes para uma esquerda que andava moribunda e desencontrada com os jovens. Ajudou o facto de o SPD ter apresentado novamente o Chanceler Olaf Scholz que ficará para sempre associado ao pior resultado dos 161 anos de História do partido. Caso tivesse passado o bastão ao seu Ministro da Defesa (a mais provável alternativa), tudo aponta para o SPD ter conseguido manter-se melhor (nisto, Scholz lembra Joe Biden e a insustentável capacidade de saber sair que tantos políticos têm).

Um pouco mais longe e à volta, ver as cores do mapa político da Alemanha impressiona ainda mais. A Alemanha de Leste, outrora ocupada pela Rússia, é hoje liderada pela AfD, que venceu em grande parte do território, conseguindo a CDU a diferença para a vitória com os resultados obtidos na antiga Alemanha Ocidental. A CDU pode fazer um discurso vencedor com um resultado também entre os piores da sua História, ligeiramente acima do que tinha obtido há quatro anos, conseguindo apenas mais 3,6% (depois de também ter afundado abaixo dos 20% em 2021).

Os quase 10% que o SPD perdeu correspondem aos quase 10% que a AfD ganhou, mas todas as análises apontam para estes últimos ganhos terem sido conseguidos junto da abstenção. Tal como em Portugal, estas forças “novas”, “populistas” e/ou “antissistema” e mais extremistas, animam o eleitorado para votar a favor (e também para votar contra). Nestas eleições na Alemanha atingiu-se um grau de participação extraordinário, com mais de 82% de eleitores a manifestarem as suas preferências.

Os Liberais sentiram o peso de apoiarem o governo, mas também de o terem feito cair, dentro do difícil equilíbrio de forças que tinham com os Verdes e os socialistas. Foram punidos com a expulsão do Parlamento. A dissidência que se abriu no Die Linke também não foi bem sucedida, apesar da força inicial, tendo sido, apesar de tudo, o sabor inesperado da noite eleitoral (porque, caso conseguissem as centésimas em falta, a sua entrada no Parlamento implicaria uma alteração no jogo de forças e número de deputados e exigiria, quase de certeza, uma nova coligação “tricolor”, com três partidos diferentes).

Aquilo que resultou da eleição de 2025 foi uma vitória da CDU/CSU e uma aparente “condenação a coligação”. Para manter a AfD afastada do poder só há uma coligação possível: CDU/CSU com SPD. Os Verdes não bastam, os Liberais foram banidos, Merz e Scholz (provavelmente quem suceder Scholz) vão ter de se entender.

Podemos identificar uma força centrípeta que aproxima os dois partidos do centro, encolhidos e desgastados pela governação, como a água que escorre para o centro da cúpula do Bundestag. Podemos, também ver a AfD a aproveitar-se das forças centrífugas que os afastam, mas a trazer discurso e ideias para o debate passando-as de impensáveis para radicais, de aceitáveis para sensatas, de populares para… leis?

O que é que espera a Alemanha e a Europa?

5) Uma visão para cima da cúpula e para o futuro
No seu discurso de vitória, o líder da CDU/CSU, Friedrich Merz, que cresceu numa escola de pensamento político “transatlântico” e sempre privilegiou alianças com os Estados Unidos da América (“EUA”) disse que a Europa tinha de proclamar a sua independência dos EUA, antecipando o fim da NATO como a conhecemos.

Para reinvestir e dar novo fôlego à economia alemã (das mais afetadas pelas sanções à Rússia, pela perda na corrida no setor automóvel elétrico com a China ou a própria América, e a pertencer a uma União Europeia em crise de identidade), a Alemanha pode ter de alterar uma importante norma-travão que, na sua Constituição, proíbe que haja défices (e maior investimento). Para isso, são precisas forças no Parlamento que, potencialmente, pode até ter de funcionar antes da nova composição tomar posse, aproveitando a atual distribuição partidária. Este tema, que era tabu ou impensável para Merz há pouco tempo, parece rapidamente descer para lei… constitucional!

O SPD está condenado a pertencer a uma coligação em que poderá enfraquecer ainda mais, mas a alternativa parece ser ainda pior, terá de fazer uma travessia para descobrir um sucessor de Scholz que saiba fazer parelha para liderar a Alemanha e procurar uma coligação no Parlamento, num sistema que funciona numa base de necessidade de força para cada Chanceler que precisa de maiorias absolutas para governar.

A AfD vai continuar a trazer temas impensáveis quanto a migrantes ou mesmo quanto à saída (que seria uma total desagregação) da União Europeia (“UE”). Para que se tenha noção dos extremismos, nem Marine Le Pen quer proximidade (já estando, ela própria, a caminhar para o centro, como Meloni, em Itália), mas, à luz da janela de Overton, só vemos temas novos mudarem de classificação e apreciação pelos cidadãos.

As redes sociais exponenciam e aceleram este fenómeno de forma avassaladora e é possível identificarmos ideias que ontem eram um não-assunto tornarem-se o centro da discussão através de posts e reposts, tweets e retweets. E se juntarmos as teorias da conspiração (ou não) de há bots a multiplicar estas publicações, ainda nos sentimos mais inseguros perante mecanismos de engenharia social.

O provável Chanceler Merz terá de lidar com um Presidente Macron que está de saída, mas ainda quer deixar a sua marca, e com um mundo que dá menos importância à UE. De Trump a Putin, passando por Xi Jinping, os europeus não têm “lugar à mesa” e/ou continuam sem saber quem enviar para que lá se sente e transmita o pensamento de uma só voz. Poder aproximar-se de Starmer e do Reino Unido será importante.

O discurso de Merz veio dar um tom e foi assertivo quanto à Ucrânia, mas também quanto ao mundo e deixa claro o que dissemos acima: «A minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível, para que, progressivamente, possamos mesmo alcançar a independência dos EUA», depois de ter comparado as intervenções nas eleições alemãs de Washington às de Moscovo.

Na noite eleitoral, ouvia um eurodeputado dizer que a UE tem, hoje, mais de 90 milhões de pessoas em situação de pobreza, 20 dos quais são crianças. Vendo e vistos através da sua cúpula, esperemos que o Bundestag e o novo Chanceler estejam à altura do desafio.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.