Após a manhã da ressurreição, os Apóstolos viveram em ambiente de cenáculo, isto é, parte do seu tempo foi passado em casa, fechados, atemorizados, paralisados, apreensivos, com medo, sem saberem exatamente como a história ia acabar ou recomeçar. É verdade que eles iam refletindo no que diziam as escrituras e reavivando a memória sobre o que Jesus tinha dito a propósito do Terceiro Dia. Os Apóstolos escutaram as palavras de Maria Madalena e foram reconhecendo a presença do ressuscitado.
No entanto, o receio prendia-os em casa, no cenáculo ou fora dele. O poderoso ‘vírus’, protagonizado pelas forças políticas e religiosas do tempo, perseguia aqueles homens onde quer que estivessem. Os Apóstolos foram fazendo o seu próprio caminho, experimentando a presença viva de Jesus, O qual se foi revelando e manifestando. No entanto, não tinham certezas absolutas, nem respostas feitas ou acabadas. Viviam da escritura, da memória, da escuta e da fé. Sentiam-se em processo, em descoberta, a fazer caminho.
Aqueles 50 dias que medeiam o domingo de Páscoa e o dia de Pentecostes foram dias difíceis, paradoxais onde o sentido e a falta dele se cruzavam. Mesmo quando saiam do cenáculo, sentiam-se presos no temor, na ameaça, com receio do que lhes poderia acontecer, ainda que tocados pela esperança. Não teria sido fácil partilharem tanto em tão pouco. Terem que se apoiar uns aos outros nos momentos em que mais precisavam de apoio. Viverem da fé no meio das maiores sombras, provas e também luzes. Cultivarem exercício de liberdade interior, de escuta e de abertura, nos momentos em que se sentiam mais confinados pelas circunstâncias.
No entanto, muito do seu tempo passado no cenáculo das suas próprias interioridades, vivido na incerteza, na busca e nas contradições de sentido, foi tempo propício a que criassem raízes, solidificassem relações humanas como amigos do e no Senhor.
No entanto, muito do seu tempo passado no cenáculo das suas próprias interioridades, vivido na incerteza, na busca e nas contradições de sentido, foi tempo propício a que criassem raízes, solidificassem relações humanas como amigos do e no Senhor. Talvez o tempo vivido em cenáculo tenha sido o período mais decisivo na constituição da primeira comunidade dos discípulos. Talvez um dos períodos mais difíceis deste grupo de homens se tenha convertido na ocasião mais favorável, mais frutífera, mais abençoada, de maior aprendizagem, de maior solidez nas suas vidas.
Nesse período, talvez tenham reconhecido a enorme força no reconhecimento e aceitação das suas fragilidades. Neste ambiente exigente, talvez tenham fortalecido as melhores raízes, estruturando e se instituindo como Igreja nascente e que veio dar a Igreja que hoje somos. No dia de Pentecostes abriram as suas casas, os seus corações, as suas vidas ao mundo. Nessa ocasião, tinham a força do Espírito Santo. Ainda assim, as suas vidas não ficaram mais facilitadas. No entanto, seguramente que se sentiam melhor preparados para enfrentarem as tempestades da vida, com a presença da Graça e a efusão do Espírito. Certamente que a experiência do cenáculo, na diversidade das suas expressões, foi para eles uma escola de vida, de exercício e de aprendizagem.
Qualquer semelhança entre o que viveram os Apóstolos em cenáculo e a quarentena a que estamos submetidos poderá não ser mera coincidência. Com todo o drama e dor associados aos dias que vivemos, e talvez por isso mesmo, este poderá ser um tempo forte de crescimento, como pessoas, famílias, comunidades e sociedade. Para isso, ainda que fechados nas nossas casas, não nos podemos fechar em nós mesmos. Ainda que mergulhados na dúvida e na incerteza, poderemos ser protagonistas dos melhores gestos de esperança, ânimo e apoio. Ainda que limitados a um espaço ínfimo, poderemos ser espaço de encontro, acolhimento, sem necessidade de maquilhagens ou filtros sociais para dar o melhor que somos e temos.
Qualquer semelhança entre o que viveram os Apóstolos em cenáculo e a quarentena a que estamos submetidos poderá não ser mera coincidência. Com todo o drama e dor associados aos dias que vivemos, e talvez por isso mesmo, este poderá ser um tempo forte de crescimento, como pessoas, famílias, comunidades e sociedade.
Quase que nos desabituamos do encontro familiar à volta da mesa. No entanto, este pode ter surgido pela força das circunstâncias e com enorme proveito. Provavelmente, as conversas eternamente adiadas pela falta de tempo poderão estar a dar lugar a um tempo sem relógio. Muito do que prescindíamos, afinal, revela-se essencial. Muitas das nossas presenças insubstituíveis poderão ser pensadas de outras formas. Afinal o próximo, quem está mais próximo ou de quem nos aproximamos, é aquele com quem podemos contar e nos pode marcar positivamente para sempre.
As fragilidades de cada um poderão ser mais sentidas e sofridas mas, se integradas e partilhadas, podem manifestar um enorme poder de cura, aceitação pessoal e familiar. O medo, a incerteza e a perplexidade sobre o futuro não vão desaparecer enquanto estivermos “fechados ou protegidos nos nossos cenáculos”. No entanto, havemos de sair deles, isto é, o nosso Pentecostes vai acontecer. Quando esse tempo chegar, se tivermos vivido estes dias numa dinâmica semelhante à dos próprios Apóstolos, seguramente que os nossos laços sairão reforçados, porque mais sólidos, mais coesos, mais humanos. Poderemos perder muito do que gostamos e nos é querido e estamos a perder. Mas talvez nos reencontremos. O vírus tem feito muito mal. No entanto, aprendendo em cenáculo, talvez tenhamos muito para receber, acolher e ganhar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.