Um tweet publicado pelo site Catraca Livre logo antes de um debate presidencial no Brasil, há cerca de 20 dias, dá uma boa ideia do que está ocorrendo por aqui: “Não contaremos com as presenças do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT)[Lula foi impugnado e Fernando Haddad ainda não foi confirmado], de Jair Bolsonaro (internado após o ataque de quinta-feira) nem do Cabo Daciolo, que está jejuando no monte”.
Lula, claro, é o ex-presidente. Está preso, condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O processo legal foi rigorosamente cumprido. A Suprema Corte lhe rejeitou um habeas corpus (a maior parte dos sete ministros indicados por Lula e sua aliada Dilma Rousseff votaram contra o ex-presidente).
Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, é o plano B do PT. Desde 11 de agosto, ele se tornou o candidato oficial. Lula está fora por força da lei e já não pode recorrer.
Jair Bolsonaro, líder nas pesquisas e principal representante da direita, foi esfaqueado durante um ato de campanha no dia 6 de setembro. Ele continua no hospital, mas deve ter alta nos próximos dias. É filiado ao desconhecido Partido Social Liberal (PSL).
Cabo Daciolo, que não tem mais de 1% das intenções de voto, é o nome do pequeno partido Patriotas.
O primeiro turno acontecerá em 7 de outubro. Existem 13 candidatos ao todo, movidos pelos mais diversos interesses e utopias – e isso é natural num país com 35 partidos, 25 dos quais com assento no Congresso. Mas o cenário agora se apresenta com alguma clareza: nenhum candidato terá maioria na primeira votação, e o segundo turno (em 28 de outubro) muito provavelmente será disputado entre Fernando Haddad (que tem pouco mais de 20% nas intenções de voto) e Jair Bolsonaro (perto dos 30%). Por ora, Haddad parece ter uma ínfima vantagem no segundo turno. Mas ainda é cedo.
Os votos de Haddad vêm da parte dos brasileiros leal ao PT, de esquerda. Em todas as eleições desde o fim da ditadura (e já foram sete), o partido ficou em primeiro ou segundo lugar. Ganhou quatro e perdeu três. Pouco importa se Dilma sofreu impeachment e Lula está preso, o apoio continua significativo.
A força política do PT se fez valer, especialmente no Nordeste, a região mais pobre e mais beneficiada pelas controversas políticas de Lula. “A gente vota nesse pé de planta, numa cachorra e até num jumento. Não é Lula que está mandando? Pronto. Se deixarem, eu vou ficar no lugar dele lá na prisão” disse uma sertaneja à Folha de S. Paulo, em reportagem publicada recentemente.
A novidade destas eleições está do outro lado: desde 1994, era o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) quem polarizava com o PT na disputa pela Presidência. Mas 2018 trouxe uma revelação ao partido: esses eleitores eram anti-PT ou conservadores, não exatamente entusiastas da sigla social-democrata. Bolsonaro ultrapassou o PSDB pela direita.
O candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, foi governador de São Paulo por quatro vezes, o que é um feito impressionante, mas não conseguiu cativar o eleitorado na disputa presidencial. Ele tem mais dinheiro, mais partidos em sua coligação e 45% do horário de TV destinado aos candidatos durante a disputa eleitoral. Mas desta vez a fórmula não se aplicou. Alckmin aparece em 4º lugar nas pesquisas, abaixo dos 10% das intenções de voto. Bolsonaro lidera mesmo com pouco dinheiro, meros 8 segundos de TV e nenhum apoio de peso no mundo político.
E quem é Bolsonaro? É, sobretudo, um fenómeno das redes sociais, onde reina soberano (tem 6,5 milhões de seguidores no Facebook ante 3,8 milhões de Lula). Capitão reformado do Exército e dono de um temperamento irascível, não foi envolvido em nenhum dos grandes esquemas de corrupção que escandalizaram o Brasil nos últimos anos. Isso é diferente de afirmar que Bolsonaro é 100% honesto, mas ajudou a formar a imagem de outsider. Ele é o único candidato que tem uma mensagem clara sobre alguns temas que são caros à maior parte dos brasileiros – a oposição ao aborto, a preservação da família, um enfrentamento claro às drogas. Embora haja inconsistências em seu discurso (ele já se disse a favor do aborto no passado e tem uma vida familiar conturbada), não há quem rivalize com ele nesse aspecto.
Bolsonaro já defendeu a tortura praticada no regime militar e disse que, se eleito presidente, fecharia o Congresso. Passaram-se alguns anos e hoje ele diz que mudou. Boa parte do eleitorado acredita. Por seu isolamento, ele conseguiu se apresentar contra um candidato anti-sistema. E parece ser isso que boa parte dos eleitores quer depois de uma grave crise política.
De antemão, pode-se ter uma certeza: a crise política não se encerrará com a proclamação do vencedor. O candidato do PSL não reconhecerá os resultados porque acredita que sua derrota seria a evidência de que as urnas eletrónicas terão sido fraudadas. O PT apontará o “golpe” que prendeu Lula e o retirou da disputa eleitoral. Virão novos capítulos da turbulenta história brasileira.
Pois sim: Cabo Daciolo já desceu do monte. Tem 1% das intenções de voto mas acredita que vencerá no primeiro turno.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.