Brasil: uma crise que as eleições não resolverão

A poucos dias da primeira volta das eleições no Brasil, Gabriel Castro, jornalista brasileiro, analisa os candidatos e acredita que a segunda volta será disputada entre Haddad e Bolsonaro. A crise política parece ter vindo para ficar.

A poucos dias da primeira volta das eleições no Brasil, Gabriel Castro, jornalista brasileiro, analisa os candidatos e acredita que a segunda volta será disputada entre Haddad e Bolsonaro. A crise política parece ter vindo para ficar.

Um tweet publicado pelo site Catraca Livre logo antes de um debate presidencial no Brasil, há cerca de 20 dias, dá uma boa ideia do que está ocorrendo por aqui:  “Não contaremos com as presenças do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT)[Lula foi impugnado e Fernando Haddad ainda não foi confirmado], de Jair Bolsonaro (internado após o ataque de quinta-feira) nem do Cabo Daciolo, que está jejuando no monte”.

Lula, claro, é o ex-presidente. Está preso, condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O processo legal foi rigorosamente cumprido. A Suprema Corte lhe rejeitou um habeas corpus (a maior parte dos sete ministros indicados por Lula e sua aliada Dilma Rousseff votaram contra o ex-presidente).

Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, é o plano B do PT. Desde 11 de agosto, ele se tornou o candidato oficial. Lula está fora por força da lei e já não pode recorrer.

Jair Bolsonaro, líder nas pesquisas e principal representante da direita, foi esfaqueado durante um ato de campanha no dia 6 de setembro. Ele continua no hospital, mas deve ter alta nos próximos dias. É filiado ao desconhecido Partido Social Liberal (PSL).

Cabo Daciolo, que não tem mais de 1% das intenções de voto, é o nome do pequeno partido Patriotas.

O primeiro turno acontecerá em 7 de outubro.  Existem 13 candidatos ao todo, movidos pelos mais diversos interesses e utopias – e isso é natural num país com 35 partidos, 25 dos quais com assento no Congresso. Mas o cenário agora se apresenta com alguma clareza: nenhum candidato terá maioria na primeira votação, e o segundo turno (em 28 de outubro) muito provavelmente será disputado entre Fernando Haddad (que tem pouco mais de 20% nas intenções de voto) e Jair Bolsonaro (perto dos 30%). Por ora, Haddad parece ter uma ínfima vantagem no segundo turno. Mas ainda é cedo.

Os votos de Haddad vêm da parte dos brasileiros leal ao PT, de esquerda. Em todas as eleições desde o fim da ditadura (e já foram sete), o partido ficou em primeiro ou segundo lugar. Ganhou quatro e perdeu três. Pouco importa se Dilma sofreu impeachment e Lula está preso, o apoio continua significativo.

A força política do PT se fez valer, especialmente no Nordeste, a região mais pobre e mais beneficiada pelas controversas políticas de Lula. “A gente vota nesse pé de planta, numa cachorra e até num jumento. Não é Lula que está mandando? Pronto. Se deixarem, eu vou ficar no lugar dele lá na prisão” disse uma sertaneja à Folha de S. Paulo, em reportagem publicada recentemente.

A novidade destas eleições está do outro lado: desde 1994, era o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) quem polarizava com o PT na disputa pela Presidência. Mas 2018 trouxe uma revelação ao partido: esses eleitores eram anti-PT ou conservadores, não exatamente entusiastas da sigla social-democrata. Bolsonaro ultrapassou o PSDB pela direita.

O candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, foi governador de São Paulo por quatro vezes, o que é um feito impressionante, mas não conseguiu cativar o eleitorado na disputa presidencial. Ele tem mais dinheiro, mais partidos em sua coligação e 45% do horário de TV destinado aos candidatos durante a disputa eleitoral.  Mas desta vez a fórmula não se aplicou. Alckmin aparece em 4º lugar nas pesquisas, abaixo dos 10% das intenções de voto. Bolsonaro lidera mesmo com pouco dinheiro, meros 8 segundos de TV e nenhum apoio de peso no mundo político.

E quem é Bolsonaro? É, sobretudo, um fenómeno das redes sociais, onde reina soberano (tem 6,5 milhões de seguidores no Facebook ante 3,8 milhões de Lula). Capitão reformado do Exército e dono de um temperamento irascível, não foi envolvido em nenhum dos grandes esquemas de corrupção que escandalizaram o Brasil nos últimos anos. Isso é diferente de afirmar que Bolsonaro é 100% honesto, mas ajudou a formar a imagem de outsider. Ele é o único candidato que tem uma mensagem clara sobre alguns temas que são caros à maior parte dos brasileiros – a oposição ao aborto, a preservação da família, um enfrentamento claro às drogas. Embora haja inconsistências em seu discurso (ele já se disse a favor do aborto no passado e tem uma vida familiar conturbada), não há quem rivalize com ele nesse aspecto.

Bolsonaro já defendeu a tortura praticada no regime militar e disse que, se eleito presidente, fecharia o Congresso. Passaram-se alguns anos e hoje ele diz que mudou. Boa parte do eleitorado acredita. Por seu isolamento, ele conseguiu se apresentar contra um candidato anti-sistema. E parece ser isso que boa parte dos eleitores quer depois de uma grave crise política.

De antemão, pode-se ter uma certeza: a crise política não se encerrará com a proclamação do vencedor. O candidato do PSL não reconhecerá os resultados porque acredita que sua derrota seria a evidência de que as urnas eletrónicas terão sido fraudadas. O PT apontará o “golpe” que prendeu Lula e o retirou da disputa eleitoral. Virão novos capítulos da turbulenta história brasileira.

Pois sim: Cabo Daciolo já desceu do monte. Tem 1% das intenções de voto mas acredita que vencerá no primeiro turno.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.