No próximo domingo o país escolherá Marcelo Rebelo de Sousa. Deveria por isso ser uma eleição sem grande história, o pretexto feliz para se discutirem ideias, o futuro e a democracia. Mas vivemos tempos paradoxais, tempos de cólera em que aquilo que somos, defendemos ou construímos parece estar contaminado.
Falo de cólera e de contaminação e não estou a pensar no vírus que alterou os pressupostos do que achávamos não ser passível de mudança. Um vírus que matou mais de dois milhões de pessoas no mundo, mas que ainda assim é menos grave do que a pandemia da intolerância que se instalou um pouco por todo o lado.
“Vai tudo ficar bem” anunciámos com boas intenções. Não vai ficar, infelizmente. Vai ficar como antes, mas com um diagnóstico mais agudo do estado em que estamos e dos desafios que temos de enfrentar para nos salvarmos como espécie.
Escrevo palavras que não parecem ter ligação com as presidenciais. Infelizmente não é verdade. A intolerância e o ressentimento trouxeram-nos agressividade, ajustes de contas, falsos e falsas profetas, moralismos de pacotilha e uma total e absoluta ausência de ideias novas que pudessem apontar, mesmo ao de leve, ao humanismo, à tolerância, e a uma ideia de bem.
A intolerância e o ressentimento trouxeram-nos agressividade, ajustes de contas, falsos e falsas profetas, moralismos de pacotilha e uma total e absoluta ausência de ideias novas que pudessem apontar, mesmo ao de leve, ao humanismo, à tolerância, e a uma ideia de bem.
Estas serão as eleições de Marcelo Rebelo de Sousa. Conseguiu ganhar o debate com Ventura confrontando-o com ideias, a melhor forma de o derrotar – o que mais nenhum candidato conseguiu fazer por manifesta incapacidade de não ir a jogo no lodo que move o populismo.
Marcelo conseguiu de um modo claro fazer ressurgir com força uma ideologia em crise: a da direita social, uma social-democracia de inspiração cristã que, infelizmente, se evadiu do combate político. Marcelo fez-me pensar numa direita inspirada em Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Francisco Lucas Pires ou Maria de Lurdes Pintassilgo. Uma direita tolerante, intelectualmente distinta, com capacidade para fazer pontes e com a ambição de não deixar ninguém para trás. Uma direita que se poderia inspirar no Papa Francisco, mas que seja combativa e conhecedora da forma e do modo como se deve falar ao país. Marcelo provou que é possível esta direita ser vitoriosa e isso parece-me ser um ganho importante.
Estas são as eleições em que emergiu um candidato comunista com uma imagem forte e um discurso rejuvenescido. João Ferreira foi uma surpresa e será, muito provavelmente, o novo secretário-geral do PCP, o que trará novos problemas ao Bloco de Esquerda. Mas são também as eleições em que as duas restantes candidatas de esquerda, Marisa Matias e Ana Gomes, não souberam fugir de um registo agressivo, crispado e também ele, de alguma forma, ressentido. Se esperava que tal acontecesse com Ana Gomes não o esperava tanto em Marisa Matias.
E talvez nunca mais a política e as campanhas políticas sejam feitas como antes da pandemia. A partir daqui encontrar-se-á um meio-termo, os políticos passarão (como nós) a ser personagens virtuais, a existir através do filtro de plataformas que não deixam de ser uma outra espécie de máscaras.
Estas são igualmente as eleições de André Ventura. Ele fala para um presente que já viu nascer gente como Trump, Bolsonaro, Salvini ou Marine Le Pen. Os seus debates foram os mais vistos – continuamos a gostar de pão e circo –, as suas citações as que mais cliques tiveram, as suas diatribes as que mais revolta suscitaram. O que diz é imediatamente projetado por uma comunicação social que o amplifica ao mesmo tempo que o deseja matar. Uma profunda perversidade, um fundo paradoxo.
Estas serão finalmente as eleições do Coronavírus. Em plena pandemia, com candidatos a fazer campanha de máscara para gente amedrontada, com números de infetados a disparar e mortes a multiplicarem-se, com as televisões muito mais ocupadas com epidemiologistas do que com campanhas eleitorais, nunca mais estas eleições serão esquecidas. E talvez nunca mais a política e as campanhas políticas sejam feitas como antes da pandemia. A partir daqui encontrar-se-á um meio-termo, os políticos passarão (como nós) a ser personagens virtuais, a existir através do filtro de plataformas que não deixam de ser uma outra espécie de máscaras.
Acabo então como comecei.
No próximo domingo o país escolherá Marcelo Rebelo de Sousa. Deveria por isso ser uma eleição sem grande história, o pretexto para se discutirem ideias e o futuro. Não aconteceu. Mas a luta de todos os democratas, à direita e à esquerda, continua.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.