Arte e Política, Arte e Religião

Esta semana, a Brotéria traz uma recensão aos dois volumes da série A Persistência da Obra, pela mão de João Sarmento, sj. Uma coleção de ensaios sobre o lugar e papel da arte no advento da modernidade.

Esta semana, a Brotéria traz uma recensão aos dois volumes da série A Persistência da Obra, pela mão de João Sarmento, sj. Uma coleção de ensaios sobre o lugar e papel da arte no advento da modernidade.

A pertinência dos dois volumes da Persistência da Obra não tem paralelo no panorama editorial da área. Entre os dois tomos, transcorreram nove anos de trabalho colaborativo, onde vários especialistas de diferentes nacionalidades protagonizaram a tecelagem de uma enorme rede conceptual em torno de um sugestivo centro: a questão da persistência da obra. Este problema elenca a pluralidade das polémicas acerca da produção de/em arte desde o advento da sua autonomização, mas explora de forma particular os contornos desta questão no contexto da arte moderna.

Nestas páginas, percebemos a modernidade como lugar das separações essenciais. As disciplinas aparentemente subordinadas começam a encontrar modos independentes de se substanciar. Nesse sentido, dão-se grandes provocações vanguardistas onde se desenham itinerários artísticos que não guardam nenhuma relação com a institucionalização dos poderes da política ou da religião, muito embora estes tenham permanecido como grandes narrativas que procuravam oferecer, no ocidente, uma representação do mundo, constitutiva de cultura. As potências energéticas de uma determinada produção em arte, fizeram persistir um “resto”, onde a obra como tal se constituiu como a natureza mesma da arte moderna. Ou seja, o lugar da obra passa a ser condição de possibilidade do fenómeno artístico, ao mesmo tempo que consuma, precisamente, a sua distinção e afastamento tanto da esfera política como da religiosa. Há, neste sentido, um modelo de «libertação da obra de toda a instrumentalização política e religiosa», que provocou uma reorganização do seu campo de ação. Assim, segundo a perspectiva que estes textos apresentam, dá-se uma necessidade imperativa de “devolução”, de um retorno ao lugar vital de cada uma das dimensões. Neste sentido a «arte persiste na história de cada vez que transcende qualquer determinação ou motivação religiosa» (vol. I p.12). Com efeito, somos alertados para o ponto de que o mecenato, o saber positivista, o poder financeiro e o juízo de gosto criaram contínuas relações de mútuos compromissos e abusos, e por isso há efetivamente uma carência de “libertação”. Porém, juntamente com a explosão das possibilidades emancipadas dos artistas da política e da religião, como realidades autónomas, emergiram com estas, ao longo dos séculos, visíveis degenerações de cada uma dessas grandezas expressas, quer numa arte niilista, com a figura da falsificação do artista e uma produção de “pseudo-arte”, quer num fazer e pensar da polis sobre a égide de uma preocupação hegemónica pelo capitalismo financeiro mundial, quer ainda, num paradigma religioso esvaziado da potência simbólica.

Há, neste sentido, um modelo de «libertação da obra de toda a instrumentalização política e religiosa», que provocou uma reorganização do seu campo de ação.

O segundo volume traz à superfície do texto a difícil condição do pensamento místico. A ocupação que este tem na geografia geral dos estudos de religião é alvo de grande atenção por parte de vários dos autores deste livro. Há uma forte porosidade entre o espaço da mística nas variadíssimas tradições religiosas, tais como nos muitos movimentos artísticos modernos e contemporâneos. A mística parece ter como efeito a capacidade de irmanar lunáticos, loucos, visionários, xamãs e artistas. Entre arte e mística assumem-se práticas conjuntas que são o lugar onde o mistério é posto em acto de experiência.

Na realidade, o princípio de separação e devolução das diferentes disciplinas vê-se matizado enquanto processo finalizado. Tal como vemos nas diferentes abordagens feitas à mística, também o tema da origem levanta proximidades insuspeitadas. Nesse sentido, encontramos explanado, neste volume, a tese da origem comum entre a religião e a arte. A expressão exata aqui usada aponta efetivamente para uma e mesma “gestação”. Embora gémeos diferentes, a arte e a religião bifurcam desde cedo em duas realidades; contudo sempre envoltas de ligações secretas e inexplicáveis, onde permaneceram, no decurso narrativo do tempo, persistências de mútuos espelhamentos, numa intimidade de memória a-histórica.

Há uma certa filosofia política e religiosa da arte aqui cultivada que tem por terreno comum o plano da experiência do espanto e do excesso.

Contudo, aproximando-nos dos conceitos que informam de propósito cada um dos volumes – política e religião – também lhes reconhecemos uma espécie de gestação siamesa, como dois lados de uma moeda. A construção simbólica do poder e a sua homologação parecem partilhar o mesmo princípio ordenador, na origem quer da religião quer da política. Neste sentido, embora seja indicado em diferentes ensaios de ambos os volumes, o leitor vê adensar-se a consciencialização de que os modelos sacralizados das realidades primitivas e as suas manifestações políticas, fundaram e estruturaram a realidade social numa simultaneidade que também conheceu inúmeras reconfigurações.

Há uma certa filosofia política e religiosa da arte aqui cultivada que tem por terreno comum o plano da experiência do espanto e do excesso. Vemos por isso afirmado que a «arte é, tal como a cosmologia e a microfísica, a última guardiã de um assombro primordial face à matéria do universo, matéria essa que nos penetra e da qual somos compostos» (vol. II, p. 186). Sem cair num reducionismo, estes autores reconhecem que, de algum modo, o lugar da separação não resolve a ferida existencial e, por isso, a obra não pode persistir retomando o «pré-Romantismo – como se nada se tivesse passado e como se fosse possível, contra o niilismo reinante (ou seja, também, o extremo mais degradado do subjetivismo), refundar valores tradicionais e reinstituir regras previamente definidoras do objecto artístico (ou mesmo do belo)» (vol. II, pp. 27, 28.). Perante a libertação da arte por parte da política e da religião, à sua independência resiste-lhe a irresolúvel ferida existencial. Persiste, no entanto, a criação como resposta à voz do tempo. A arte persiste como resposta, sob a forma de obra.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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