2019 marca a passagem dos 20 anos de “O Monstro Precisa de Amigos”, 2º e último álbum da curta discografia dos Ornatos Violeta, cuja carreira posterior à edição deste disco se limitou a um reduzido número de concertos (um em 2001, quatro em 2012 e três em 2018) nos quais se percebeu que aquelas canções não só tinham sobrevivido ao tempo como ganharam uma dimensão e popularidade que ultrapassaram, e muito, a que tinham alcançado em 1999.
Olhando estas duas décadas e constatando este crescimento do fenómeno Ornatos Violeta, sem que durante este período tenham tido atividade relevante, percebemos que há muitos fatores, para além da validade artística (que, diga-se, não está em causa), a ditar o sucesso ou insucesso de um disco ou projeto na cena pop-rock. Também é sabido que o planeta rock se gosta de alimentar de mitos e a opção por cessar atividade naquele que foi o pico da sua carreira até então ajudou a criar a aura que os passou a acompanhar de modo sempre crescente. Também é certo que desde então muito mudou na indústria musical, mas a capacidade de ganhar visibilidade, de encontrar as pessoas certas para mediatizar as canções, de conquistar a simpatia dos principais fazedores de opinião, de saber gerir uma carreira da melhor forma, de ter uma editora a apostar forte e do modo certo, de saber explorar o momento, entre muitos outras coisas, mantêm-se agora tão relevantes como então. Isto porque também é verdade que muitas outras propostas, do ponto de vista artístico igualmente válidas, caíram no esquecimento e foram incapazes quer de captar a atenção do público, quer de vencer a barreira do envelhecimento.
É música que sabe esperar pela sua oportunidade para ganhar, um a um, mais e mais apreciadores que, quando a encontrarem, vão saber guardá-la num recanto especial e celebrar em segredo a sua intemporalidade.
É para algumas dessas propostas que pretendemos olhar ao longo deste texto, sem qualquer pretensão de fazer uma listagem exaustiva. Este olhar não pretende ser um exercício saudosista em busca de marcas que ficaram para trás no tempo, mas, pelo contrário, busca perceber (e, eventualmente, dar a conhecer) que por aquela altura (mais ano, menos ano) se foram produzindo trabalhos musicais que artisticamente ainda mantêm a sua validade e que, por um sem número de razões, ou caíram no esquecimento ou não tiveram sequer a oportunidade de chegar a um público que, por desconhecimento, os reconhecesse como tal. Um exercício que se justifica porque se trata de música intemporal, à espera de ser escutada e apreciada. Isto é, queremos olhar para alguns fragmentos do que se passou ao lado de “O monstro precisa de amigos” e sublinhar que neste espaço temporal foi produzida música que possivelmente justificaria igual projeção, mas que por pouca fortuna ou falta de oportunidade não foi capaz de a atingir. Uma escolha sem qualquer preocupação em manter proximidade estilística ou estética à obra maior dos Ornatos Violeta.
Talvez o caso mais sintomático seja o de “Um Zero Amarelo”, nome do único álbum do grupo com o mesmo nome que, em 2000, editou um conjunto verdadeiramente notável de canções, tocadas em doses iguais por amor, eletricidade e melancolia, embrulhadas em palavras cuidadosamente entrelaçadas com melodias que se jogam entre a delicadeza e a descarga de energia. Temas como “Oriente Selvagem”, “Carne Elétrica”, “Como Um Cavalo Louco”, “Voyeur” ou “Trist” continuam, ainda hoje, segredos muito bem guardados, mas são preciosas canções, daquelas que não se apagam do afeto de quem por elas se deixou apaixonar. “Sem Perdão”, do EP que editaram em 2013 fazendo todos acreditar no desejado regresso, também se inscreve facilmente no manual das canções belas e inesquecíveis, mas, nesta altura, nada indica que a carreira do grupo venha a ter continuação.
Também belo, ou ainda delicado e frágil, são adjetivos que assentam como uma luva em “April”, o álbum que em 2002 Francisco Silva levou a estúdio enquanto Old Jerusalem. Depois desse já produziu mais 6 registos em longa duração, mas da sua estreia é impossível não gostar, tanto pela candura quase inocente das canções como pela entrega esforçada de um autor em busca de auto-superação, demonstrando uma humildade e honestidade raramente vistas no circo da indústria musical. “Stroll” ou “Swan” são canções que começam a deixar saudade no exato momento em que chegam ao fim.
Dos Stealing Orchestra vem-nos de imediato à ideia o festim que é “The Incredible Shrinking Band”, de 2003, um disco sem fronteiras musicais que cruza múltiplas linguagens, baralhando-as para voltar a dar num estilo muito próprio. É, ao mesmo tempo, rock, jazz e música popular em celebração bem-humorada e em constante desafio, que se materializa em títulos como “Os Caretos de Podence”, “Que Deus te dê o dobro de tudo o que nos desejares”, “Just Like Oskar, We’ll Never Grow Up” ou “Sorry Captain but… Shouldn’t We Be Thinking About Cosmic Hazzards, Instead Of Destroing Our Space-Ship & Killing The Crew?”.
O romantismo melancólico, com traços cinzentos e contornos pouco definidos, é a imagem de marca do fascinante “Nº 1. Sessão de Cezimbra” (sim, escrito assim mesmo), de João Coração, um requintado rebuçado servido pela editora FlorCaveira em 2008 e que conta com a colaboração de alguns dos nomes fortes do seu catálogo, como Samuel Úria, Jorge Cruz ou Tiago Gillul. Este é um disco de um trovador fora do seu tempo (e, por isso, de todos os tempos), com um largo espectro de instrumentos a pontuar canções que deambulam por amplas pastagens, ruas parisienses, falésias escarpadas junto ao mar e sombras noturnas quebradas pela luz quente da lareira. “À volta do rio”, “Conheci uma menina”, “Balada dos uivos” ou “Nada mais” perduram na memória e voltam com mais força a cada nova audição.
Certamente mais conhecido e reconhecido que os nomes até aqui referidos, Samuel Úria está longe de atingir a notoriedade que a sua música há muito reclama. A sua veia etnográfica fixa em canções o seu olhar sobre o mundo e a sua fé alimenta a leitura antropológica que faz dos acontecimentos quotidianos, com pormenores deliciosos polvilhados em palavras distribuídas com todo o cuidado e em melodias construídas com o talento dos mestres. “Nem lhe tocava”, de 2009, merece muito mais atenção do que a que lhe foi dispensada e conhece momentos altos em “Não arrastes o meu caixão”, “Teimoso” ou “O diabo”.
Com profundas raízes na tradição da música popular portuguesa, mas reacondicionada numa roupagem rock, “Virou!”, o disco de 2009 do projeto Diabo na Cruz, atreveu-se a cruzar dois universos aparente inconciliáveis, com resultados assinaláveis e a coragem dos audazes. Conseguiu com êxito criar rock que na sua essência é profundamente português, universalizando aspetos culturais que até aqui pertenciam apenas ao cancioneiro ligado ao trabalho rural do nosso país. Ouça-se “Dona ligeirinha”, “Os loucos estão certos”, “Bico de um prego” ou “Canção do monte” e percebe-se de imediato o largo alcance de “Virou!”.
Pelo contrário, os X-Wife submergem da cabeça aos pés na urbanidade ocidental e no rock orientado às pistas de dança, misturando guitarras e teclados com o mesmo impulso rítmico. É isso que faz de “Are you ready for the blackout?”, de 2008, um disco talhado para animar qualquer serão de festa ou viagem de automóvel de vidros abertos. Riffs de ascendência funk e aceleração herdada da cultura DJ, adaptada para o Porto a partir da matriz Nova Iorquina, podem ouvir-se à solta ao longo de todo o álbum, mas conhecem o zénite em “On the radio”, “Headlights” ou “Fireworks”.
Já em “Jamboree Park at the Milky Way”, dos Weatherman, parece que encontramos vivo o espírito dos maiores mestres da pop espalhado em 12 maravilhosas canções de celebração, daquelas que apetece cantar de braços abertos e a sentir o vento na cara. Música na qual se sente uma certa transcendência e uma grande vontade de elevação do espírito em direção ao universo desconhecido, embalados por pianos e instrumentos de sopro e por alegres refrões que pedem que os repitamos até à exaustão. “Chloe’s Hair”, “God’s Reply” e “We Were Given Space” merecem estar em lugar de honra no livro de memórias de qualquer verdadeiro apreciador de canções grandiosas.
Finalmente, também incluiríamos neste lote um disco bem mais recente, de 2010, dos Peixe:Avião. “Madrugada” vive num terreno pulsante, entre o rock e a música eletrónica, desenhando elegantes silhuetas que bailam, ondulantes, por entre a penumbra e a fluidez imprevisível de feixes de luz em fumo. Um álbum que contou com a colaboração de Manuela Azevedo, a voz dos Clã, e do pianista Bernardo Sassetti, entretanto falecido, do qual se destacam as canções “No jogo da quimera”, “Fios de fumo”, “Detalhes de um plano” ou “Sentido de Calma”. Aliás, importa sublinhar que todos os quatro álbuns da carreira dos Peixe:Avião, da qual “Madrugada” é o segundo, são obras cuidadas, que crescem a cada nova escuta, muito apreciadas pela crítica musical, mas que tardam em chegar a um reconhecimento público que lhes faça jus.
Em suma, há muita música bastante relevante que, por desconhecimento de grande parte do público, não vai conhecer toda a atenção que “O monstro precisa de amigos” merecidamente recebeu na sua celebração do 20º aniversário. Mas é música que sabe esperar pela sua oportunidade para ganhar, um a um, mais e mais apreciadores que, quando a encontrarem, vão saber guardá-la num recanto especial e celebrar em segredo a sua intemporalidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
Conheça melhor a Brotéria