Amar o que é necessário

Esta semana, a Brotéria sugere o filme Amor Fati, uma coletânea de histórias de intimidade e fragilidade.

Esta semana, a Brotéria sugere o filme Amor Fati, uma coletânea de histórias de intimidade e fragilidade.

O novo filme de Cláudia Varejão foi sendo criado ao longo de dois anos, desde um processo de casting particular, em busca de pares e grupos com semelhanças físicas, até à sua estreia no festival suíço Visions du Réel, que acabou por ser realizado num formato digital. Ao longo do processo, Varejão acompanhou de perto a vida das várias pessoas que se predispuseram a ser retratadas no seu dia-a-dia, e até em momentos marcantes (e.g. casamento, morte, nascimento de um filho).

Vemos irmãs, mães e filhas, animais e os seus donos nas suas relações de proximidade, ou, como disse a autora ao Ípsilon, nos afetos que revertem a fragilidade. Amor Fati surge como uma celebração da intimidade quotidiana das pessoas que são frágeis e invisíveis, em vários sentidos. Num primeiro sentido, mais evidente, das pessoas que vivem à margem da sociedade, como a família de músicos imigrantes arménios; Lucinda e Ana, as irmãs idosas de Pitões das Júnias; Antónia e Samira, a mãe e filha ciganas; Carla e Ringo, mãe e filho, negro e cego; Alzira e Margarida, as irmãs gémeas que vivem e gerem um restaurante juntas; Nix e Pacola, o casal queer; Simão/ Symone e o seu cão; até, se quisermos, Emanuel e o seu cavalo e Duarte e a sua águia, ambos apartados da vida social.

Por serem invisíveis talvez, mas também para determos a nossa atenção em cada par, vemos os planos concentrados nos retratados, por exemplo, e de forma muito clara, quando Simão vai ao veterinário, ou quando as gémeas vão à cartomante, ocultando os rostos dos outros intervenientes em cena. O momento é deles, e é de intimidade. Noutros casos, é a resistência à opressão que faz com que alguns destes invisíveis encontrem essa mesma intimidade, como a mãe e a filha ciganas quando dialogam sobre os preceitos do casamento.

O predomínio dos retratos é feminino mas, numa outra forma de invisibilidade, também intuímos a presença de um pai que fotografa e filma as duas irmãs jovens, o par que faltava mencionar: Inês e Teresa. Ao longo do filme, vamos vendo intermitentemente pequenos excertos de vídeo da infância destas irmãs, passada na China. No final, vemo-las reunidas a rever o álbum de fotografias da família. É este pai oculto que permite a eternização da história de afeto, a possibilidade desta memória agradecida. A verdade é que Amor Fati é muito mais do que a compilação de pares curiosos. Amor Fati apresenta-nos o mistério da vida, que tem sempre de passar pela memória e pela morte, sem grandes explicações – e vemos, por isso, no final do filme, a memória, a morte e uma nova vida. Aqui vemos as relações de afeto como a forma de amar o que é necessário, como defendia Nietzsche em Ecce Homo.

O oráculo deste filme, aliás, surge na figura de Ringo, não por acaso cego, e que nos interpela com a dúvida: «Dizem que os rostos daqueles que se amam tendem a ficar parecidos. As pessoas atraem-se e repelem como se fossem elementos químicos. Mas como reconhecer a pessoa e o caminho certo?» O que Amor Fati nos mostra é que, em última instância, tal questão não se põe: quando se aceita a fragilidade, o amor desenvolve-se de forma natural, não só em pares, mas também entre pares, em família e com o resto da Criação.

Por este motivo, é uma pena que o aspeto platónico mais referido sobre este filme seja o mito de Aristófanes n’O Banquete, segundo o qual uma parte da alma passa pelo mundo em busca da outra. Tal não passa de uma forma pitoresca de apresentar a questão. Na verdade, o que verdadeiramente de platónico sobressai neste filme é aquela ideia relatada por Sócrates, de que o amor (eros) é filho da pobreza, que é uma forma de carência, ou mesmo de fragilidade; e que o amor é gerar na beleza. Há nesta intuição um certo sentido de religiosidade com o qual nos pasmamos através das diferentes vidas que aqui encontramos: de forma mais óbvia em Ana e Lucinda a rezar antes de dormir, mas também vemos gestos eucarísticos no serviço à mesa, uma procura de transcendência e de religação na Natureza, na festa, na pertença à família. Talvez isto transpareça o sentido de religiosidade da própria realizadora: o olhar espantado pela diversidade é a forma mais clara da reverência à vida.

Cláudia Varejão chegou a confessar à revista Gerador que «[p]odia ficar uma vida toda a filmar aquelas pessoas e seria incompleto. (…) é muito difícil juntar estas partes todas, falta sempre…» Esta dificuldade em selecionar, em cortar e coser é tanto o ponto fraco como o ponto forte da realizadora. A sequência final confirma-nos isto, ao confundir o espetador: porque surgem, de repente, tantos outros pares que não víramos antes, numa velocidade estonteante, se não por esplendor estético? Entretemo-nos, como aliás ao longo do filme, a ver os elementos comuns, mais ou menos simbólicos, de plano em plano (seja um cavalo, uma loja de reparações ou uma jaula), mas não compreendemos os excessos deste jogo, que retiram profundidade a cada história. O desejo de universalidade, a ânsia de tudo abarcar, talvez ofusque a realidade particular. É esta falta de articulação que nos faz crer que Amor Fati é sobretudo um projeto fotográfico de indubitável mérito. Por todas as questões que abre e pela contemplação a que convida merece ser visto em recato.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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