A playlist de João Francisco Gomes para quem anda com os horários trocados

Habituado a andar com as horas trocadas, o jornalista do Observador preparou uma playlist a pensar naqueles a quem o trabalho, alguma preocupação, insónia ou simplesmente o gosto de ficar acordado pela noite fora troca os horários.

Habituado a andar com as horas trocadas, o jornalista do Observador preparou uma playlist a pensar naqueles a quem o trabalho, alguma preocupação, insónia ou simplesmente o gosto de ficar acordado pela noite fora troca os horários.

Estamos (quase) todos em casa outra vez. O bem comum exige-nos esforço e sacrifício numa medida infinitamente menor que a que se exige a quem, sem o poder, também preferia confinar-se ao seu lar. Todavia, que não haja ilusões. Até para os afortunados que trabalham à distância, e que têm um lugar de conforto para estar, o confinamento pode ser um desafio. Estar, somente estar, pode ser caótico. As horas sucedem-se sem sairmos do lugar. Os dias transformam-se em noites sem que disso demos conta. Amanhã é igual a ontem (e suspeitamos que também a hoje, mas não há como saber). O lugar do trabalho e o lugar do repouso confundem-se. O tempo do ofício e o tempo do descanso consubstanciam-se. O almoço e o jantar desordenam-se. O sono e a vigília desentendem-se. O vizinho de cima madruga; o de baixo é da noite. Já são três da manhã? Ainda são três da manhã? Entreguemo-nos às canções, que não têm hora que não aquela em que as ouvimos.

 

1.     (I Don’t Know Why) But I Do — Clarence “Frogman” Henry

Há momentos em que não sabemos bem porquê, mas sabemos que sim. Num rosário de dias solitários e noites melancólicas, “I don’t know how I manage, but I do”. Comecemos por aceitar; deixemos que as horas se nos troquem. É possível que não saibamos como lidar com tudo isto, mas o certo é que lidaremos — e amanhã falta menos um dia.

 

2.     Tempo Aprazado — Samuel Úria

Não são só os horários que nos andam trocados. São os dias, os meses. Estamos há muito tempo nisto. Talvez o último abraço já tenha mais de um ano. É possível que estejamos reféns do bocado, sem ver além deste tempo aprazado. Reconhecendo o drama, o poema termina com a esperança: este tempo tem prazo.

 

3.     Canção de Engate — António Variações

Um amigo entendido em canções contou-me, um dia, o segredo da Canção de Engate: um extraordinário primeiro verso. “Tu estás livre e eu estou livre / e há uma noite para passar.” Ninguém fica indiferente a uma história prestes a acontecer. Quando chegamos ao refrão, concluímos que não é o tempo que faz o amor — é o momento. Passámos muito tempo longe dos outros; passaremos mais ainda. Perderemos a noção das horas, dos dias e das semanas, mas não nos faltarão os momentos em que nos damos.

 

4.     Because the Night — Patti Smith

Porque, se a noite nos pertence, não faz mal nenhum andar de horários trocados.

 

5.     In the Still of the Night — The Five Satins

Acordados, no silêncio da noite, talvez nos lembremos “daquela noite de maio” em que “as estrelas brilhavam lá no alto”. Por muito que o tempo nos rasteire, que os dias nos troquem as voltas, que as noites solitárias se transformem em dias e que as semanas de horas incertas se prolonguem, as noites de maio voltam sempre.

 

 

6.     Medo — Amália Rodrigues (com o piano de Júlio Resende)

Para as noites em que o mais-que-compreensível medo nos troca as horas.

 

7.     Tot va bé (i és de nit) — Mireia Vives & Borja Penalba

Uma noite, na rua em Barcelona sem saber que horas eram, ouvi uma guitarra misteriosa ao longe. Segui-lhe o rasto sonoro em busca da fonte. (Tudo bem, eu admito: passou-me pela cabeça que talvez perto do concerto houvesse um bar que me servisse uma cerveja.) Esta dupla de roqueiros valencianos estava a tocar para uma multidão eufórica num pequeno beco, numa festa independentista. Fiquei maravilhado com tudo aquilo. No final, fui conversar com eles e comprei-lhes um disco; o livrete fez-me mergulhar no fascinante universo do catalão. Numa noite de horas esquecidas, tropecei num dos discos da minha vida. É mesmo assim: às vezes é de noite (nos nossos dias, nas nossas vidas), não dormimos, mas o mundo continua e está tudo bem assim.

 

 

8.     On The Turning Away — Pink Floyd

Atravessamos o momento mais desafiante das nossas vidas. Num sobressalto coletivo, protegemo-nos como podemos do desconhecido, sem lhe conhecer as armas. À frente, vemos um caminho de perigos e obstáculos. À pandemia somam-se os ataques civilizacionais que já conhecíamos e que, para nosso infortúnio, parecemos ter esquecido. Tomámo-nos por garantidos, e à nossa saúde, e à nossa humanidade. Descobrimos que não éramos garantidos, nem a nossa saúde, nem a nossa humanidade. “Light is changing to shadow / And casting it’s shroud / Over all we have known.” Mas não sairemos da sombra sozinhos. Por isso, não olhemos para o lado. “Don’t accept that what’s happening / Is just a case of others’ suffering / Or you’ll find that you’re joining in / The turning away.”

 

9.     Tiempo y Silencio — Cesária Évora

Quando as horas se nos trocam, é-nos dado o privilégio do tempo e do silêncio.

 

10.  The Sound of Silence — Simon and Garfunkel

Um clássico é um clássico. Duas vozes que são uma, uma canção magistral e um poema que me faz querer estar acordado à noite. Olá, escuridão, minha velha amiga.

 

 

Fotografia –  Mitchell Luo – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.