Sábado
No dia seguinte a enchente foi ainda maior. Era fim-de-semana e, para além disso, a exposição tinha sido noticiada, na véspera, em todos os telejornais. Já com medo desta enchente, eu tinha pedido à direcção que destacasse pelo menos mais um vigilante para aquela sala. Disseram que não era necessário e reafirmaram que a mim me queriam junto do quadro. Tinham também garantido a segurança nocturna do quadro: o Cristo passaria a noite na sala blindada da cave.
A meio da manhã estava menos gente diante do quadro e eu tive uma perspectiva mais aberta da sala. Foi então que a vi de novo, a rapariga da véspera. Ana. Estava sentada num sofá. Olhava, pensativa, para o quadro e depois escrevia umas coisas num caderno. Estava sozinha. Por duas vezes veio até junto da pintura. Parecia que queria descobrir algo no rosto de Cristo. Passou-me pela cabeça que – apesar das aparências – a rapariga podia ser perigosa. Depois achei que o pensamento era ridículo e até cheguei a pensar que podia ser outra polícia à paisana para além dos três que eu já tinha identificado! Deve ter visto que eu a observava, porque, à segunda vez, disse-me um “olá” fugidio. Como quem se sente na obrigação de o fazer. Aproveitei para meter conversa.
– É bonito, não é?
– Sim, é especial – respondeu ela, olhando de relance para mim. Sabe se há postais deste quadro à venda na loja do museu?
– Acho que não – disse eu com pena.
– Ah! – disse ela, pensativa.
– Pobrezito! – comentou uma senhora idosa de roxo que entretanto tinha chegado com uma outra senhora idosa de cinzento.
– Nunca ninguém sofreu tanto como ele, – acrescentou a senhora idosa de cinzento. – E tudo isto para nos salvar.
– É verdade – exclamou a senhora idosa de roxo – sabes quem é que morreu? Foi o marido da Dª Helena, coitado. Uma coisa má… Mas sofreu tanto que certamente, foi direito para o céu!
– Desculpem – disse a rapariga, que ainda ali estava, intrometendo-se na conversa. Quando uma pessoa sofre muito vai para o céu?
– Sim, menina. Não penses que se entra no céu às gargalhadas! – disse a senhora idosa de roxo. – Jesus salvou-nos porque sofreu muito. Basta olhar para este quadro.
– Ah! … – disse ela, fazendo um sim triste com a cabeça, como quem percebe tudo. Mas depois, olhando de novo para a tela:
– Está a sofrer mas também está a sorrir. Eu pensei que o segredo estava no sorriso e não no sofrimento. Como é que alguém pode sorrir quando está a sofrer?
– Ah! Ora viva! – exclamou a senhora idosa de roxo. – Padre Avelino! Que gosto encontrá-lo aqui! Viemos à exposição, como nos recomendou.
A única coisa que salva é o amor. – disse o P. Avelino. – Este sorriso de Jesus mostra como conseguiu amar, mesmo através do sofrimento. Mas o sofrimento, por si só, não leva a lado nenhum e devemos lutar contra ele.
O padre Avelino era um homem de meia-idade com cara de bom. O padre da paróquia.
– É mesmo bonita esta pintura, não é, padre Avelino? Olhe, veio mesmo na altura certa. Estávamos a falar aqui com esta rapariga sobre como é que Jesus nos salva[1]. Eu estava a explicar-lhe que é o seu enorme sofrimento. Ela pensava que era o seu sorriso, imagine! Esta juventude, P. Avelino!
– Olá, sou o padre Avelino. Como te chamas?
– Ana.
– Ana, tens toda a razão. É o sorriso. Desculpem, minhas senhoras.
As senhoras fizeram cara de espanto e exclamaram em coro:
– O sorriso?!
Uma delas acrescentou:
– Mas então o sofrimento, não conta para nada?
– A única coisa que salva é o amor[2]. – disse o P. Avelino. – Este sorriso de Jesus mostra como conseguiu amar, mesmo através do sofrimento. Mas o sofrimento, por si só, não leva a lado nenhum e devemos lutar contra ele. Por isso é que a Igreja tem tantas obras sociais, como nós, lá na paróquia. A sopa dos pobres e o Centro de Dia, por exemplo. Se o sofrimento salvasse, devíamos fechá-las já, minhas senhoras!
– Mas – disse a rapariga, maliciosamente – quando uma pessoa sofre muito não vai logo direita para o céu?
– Que disparate! Nesse caso devíamos todos tentar ser infelizes! O que leva ao céu é o amor, não o sofrimento. Mas quando o sofrimento bate à porta podemos aprender a amar através dele, e a crescer até com a própria dor. Isso sim. É difícil mas é possível com a ajuda de Deus. É o caso de Jesus.
– P. Avelino, vamos tomar um chá na cafetaria do museu? – sugeriu uma das senhoras.
– Vão andando que eu já lá vou ter. Vou só terminar a conversa com a Ana e já vos apanho.
As senhoras despediram-se contrariadas. O P. Avelino ficou só com a rapariga.
– Desculpa se me estou a intrometer, mas o que leva uma rapariga da tua idade a conversar com duas avós acerca do modo como Cristo nos salva?
– Não é Cristo, desculpe a franqueza. É o quadro. Aliás, sim, é o Cristo deste quadro.
– Interessas-te por pintura, é isso?
– Não, não percebo nada de arte nem nunca me interessei por pintura mas a cara dele é igual à cara de uma rapaz que eu conheço. Ou melhor: que conheci. É igual. É impressionante! Se lhe tirar as barbas fica igual.
– Sim, e…?
– E é igual! Quer ver?
Dizendo isto, tirou do bolso a foto de um rapaz da sua idade de fato de banho numa esplanada de praia a oferecer uma garrafa de cerveja à pessoa que lhe estava a tirar a fotografia. O P. Avelino olhou para a fotografia sem pressa e depois para o quadro.
– Sim, são parecidos – disse o P. Avelino. – Ambos têm um nariz, dois olhos e o tronco nu. E ambos são loiros… excepto Jesus que é moreno! E ambos estão a sorrir… excepto o teu namorado… desculpa, o teu amigo.
– Tem razão. Era meu namorado, na altura. Agora, nem meu amigo…
E, dizendo isto, comoveu-se.
– Calma, miúda.
– Eu adorava-o, sabe? Sabe o que é acordar de manhã e ser feliz como nunca se foi antes? Ele era tudo para mim. Por ele eu seria capaz de tudo. Se eu lhe contasse os sítios onde fomos e as coisas que vivemos juntos! Eu não sabia que era possível ser-se tão feliz.
– Que bom… E depois? Morreu, foi?
– Pior. Está vivo e a ir aos mesmos sítios onde nós íamos… com outra pessoa. Quem morreu acho que fui eu… Morri. E, não sei como, vim parar diante deste quadro e não me apetece sair daqui. Não sei se é por me fazer lembrar o Jorge ou por sentir que Jesus também foi abandonado como eu e que também sofreu como eu. Não sei…
Não pôde continuar, recomeçou a chorar.
– Desculpe eu estar a desabafar consigo. Nem sei como é que estou a falar sobre isto. E nem sei como é que estou a falar com um padre… Não leve a mal. Nunca tinha falado disto com ninguém e já foi quase há um ano. Desculpe estar a maçá-lo mas estou tão perdida que…
A rapariga continuou a chorar. O P. Avelino parecia ter todo o tempo do mundo.
– Fala com ele, que te compreenderá melhor que ninguém.
– Com ele…?
– Com este Jesus à tua frente.
– Foi isso que eu fiz a manhã toda. Às vezes nem o via porque fiquei ali sentada nos sofás e passava muita gente pelo meio. Mas sabia que ele estava aqui e continuava a falar com ele e a escrever-lhe. Pareço parva! Já escrevi uma carta de dez páginas a uma pessoa de um quadro! Mas dá-me tanta paz o sorriso dele. É como… como …
– Como uma porta aberta num beco sem saída, é?
– Sim, talvez seja isso. É como se me dissesse: “não fiques presa ao passado”.
– Pois, o passado já passou.
– Passou e não passou. Parece que vou viver o resto da vida a recordar e a chorar. Não vejo que possa haver mais nada de bom no futuro, é horrível. Foi tão bom o que vivi!
– E não acreditas que haja, para ti, guardadas no futuro, coisas novas e inesperadas?
– Sinto que não. Sinceramente sinto que não pode acontecer nada de novo tão bom como o que tive. Já tentei mentalizar-me do contrário mas sinceramente é o que sinto.
– Tenho de ir, Ana. Tenho duas avós e um chá à minha espera. Fala com ele, que te pode ajudar mais do que eu. Pede-lhe que te explique como consegue sorrir.
O P. Avelino despediu-se da rapariga e foi-se embora. Ela continuou ali diante do quadro. Passado pouco tempo ouviu-se um anúncio nos altifalantes a dizer que faltava meia hora para o encerramento da exposição. As portas reabririam novamente no dia seguinte, às nove horas da manhã.
Notas:
[1] Teologicamente chama-se “Salvação” à plena realização ou “Felicidade” do ser humano. Para isso Deus nos criou, para que fôssemos salvos. A única coisa que Deus quer – e quere-o para todos os homens – é que sejamos salvos.
[2] O que os cristãos veneram em Cristo crucificado não é o Seu sofrimento mas o Seu amor. Tal como Ele disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). Jesus não aceitou a morte por masoquismo mas por antecipar o bem que daí resultaria para outros. A morte de Jesus foi, da Sua parte, um acto de amor, de bem-querer. De algum modo Jesus entendeu que a entrega da sua vida daria origem a muitas vidas mais “salvas”. Tal como o grão de trigo que, morrendo na terra, permite o nascimento de muitos grãos de trigo (Jo 12, 24). Foi por isso que, podendo ter fugido à cruz, Jesus não fugiu. É esta Sua entrega (não simplesmente a Sua dor) que é “salvadora”, ou seja: uma porta por onde se abrem novas possibilidades de realização pessoal para quem de Jesus se aproximar.
PROPOSTA DE REFLEXÃO
Tira um tempo para estares com Jesus. Se possível vai diante de uma cruz ou de outra imagem da paixão de Cristo. Faz-Lhe companhia. Se te ajudar usa os seguintes pontos de reflexão e de diálogo com Ele:
Acreditamos que, no fim, só a paz e a alegria permanecerão. Mas, por enquanto, existem ainda no mundo muitas tensões e muitos sofrimentos. Jesus na cruz une-os às Suas próprias dores. Fala com Cristo crucificado dos sofrimentos que vês à tua volta. Une-te a Ele na cruz e oferece-Lhe com amor aquilo que pessoalmente te faz sofrer.
Acreditas que haja, para ti, guardadas no futuro, coisas novas e inesperadas? Pede a Jesus a Graça da confiança mesmo quando não vês nenhuma saída nem futuro. O que te ajuda a ter esperança?
A Páscoa em três atos – II. Exposição e Azáfama
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.