A mão

Deus não está só no Céu a olhar para nós. Está também nas nossas vidas a trabalhar por nós. É tarefa do Espírito Santo. Bem O podemos imaginar como a Mão de Deus que ampara, guia, acaricia, cura, aconselha, obriga a ajoelhar, dá luta...

Deus não está só no Céu a olhar para nós. Está também nas nossas vidas a trabalhar por nós. É tarefa do Espírito Santo. Bem O podemos imaginar como a Mão de Deus que ampara, guia, acaricia, cura, aconselha, obriga a ajoelhar, dá luta...

Usamos muitos símbolos para falar do Espírito Santo: a pomba, o fogo, o vento, etc. Mas ultimamente tenho pensado num símbolo menos comum: a mão. O Espírito Santo é a mão de Deus que nos encaminha. Recordo mãos que tocaram a minha vida nalgum momento – e que, por alguma razão, me ficaram na memória – para perceber melhor o Espírito Santo…

A mão no selim da minha bicicleta

Quando eu era miúdo não havia bicicletas para crianças. Muito menos bicicletas com rodinhas. Aprendíamos a andar de bicicleta sentando-nos lá em cima, pedalando e tentando não cair. Era assim que aprendíamos. Lembro-me bem da sensação. Foi durante as férias de verão, numa estrada plana de terra batida pelo meio de um pinhal. Não me sentia inseguro porque o meu pai corria a meu lado com a sua mão forte a segurar o selim da minha bicicleta. Mas lembro-me do susto que apanhei quando o vi a ultrapassar-me a rir!

Várias vezes tenho tido esta sensação de estar a ser acompanhado por Deus e seguro por Ele em situações que estão para além do meu controle. Numa das primeiras vezes em que dei Exercícios Espirituais, apareceram mais de 20 pessoas (estudantes universitários) para fazer esse retiro. Eu não tinha experiência; nem sequer era padre. Aliás, ainda nem sequer tinha começado o curso de teologia. Levava comigo para o retiro, bem preparados, os “pontos” para as meditações do 1º dia, pensando que lá teria imenso tempo para preparar os outros dias. Não imaginava que algum estudante quisesse ter orientação espiritual comigo. Mas queriam e formavam fila à porta do meu quarto. Bem ou mal, lá fui conversando com cada um. O pior é que deixei de ter tempo livre, esse tempo com que eu contava para preparar os “pontos” que daria nos outros dias do retiro. Cheguei ao ponto de dar “pontos” sem saber ao certo o que iria dizer. Lembro-me bem da aflição, percorrendo sozinho um longo corredor da casa de retiros, em direção à sala onde todos me esperavam em silêncio. Nesse corredor, enquanto caminhava, tive uma experiência espiritual tão forte que nunca mais esqueci. Vi Deus a olhar para mim, de cima para baixo, e a rir às gargalhadas. Era o Pai que ora me segurava no selim ora me ultrapassava.

Nesse corredor, enquanto caminhava, tive uma experiência espiritual tão forte que nunca mais esqueci. Vi Deus a olhar para mim, de cima para baixo, e a rir às gargalhadas. Era o Pai que ora me segurava no selim ora me ultrapassava.

A mão forte na Sé de Lisboa

Fiz o crisma com 9 anos. (Hoje penso que é um disparate fazer tão novo – penso que a confirmação do batismo deve ser feita quando se tem idade para tomar decisões para a vida – mas era assim na altura). Ajoelhei-me diante do bispo para a crismação. O bispo ungiu-me a testa, eu disse o 1º “Ámen” e – precipitadamente, porque o ritual ainda não tinha acabado – ia levantar-me logo. Foi aí que senti a mão forte do padrinho a carregar no meu ombro para baixo, para que me mantivesse ajoelhado até ao fim.

Já várias vezes senti a mão de Deus a tentar que eu não ceda à pressa e não me levante antes de tempo. Na oração, por exemplo, quando há muitos assuntos importantes à espera, e me apetece terminar antes do fim do tempo que destinei para rezar. “Estou tão distraído que não adianta estar aqui a tentar rezar! Vou mas é despachar assuntos; afinal é tudo para Ele”. Aí, frequentemente, sinto a mão de Deus a pressionar-me para que não me levante antes de tempo. Creio que é o Espírito Santo a dizer “fica!”.

Também já me aconteceu sentir que a mão de Deus me obrigava a continuar ajoelhado diante da Igreja. Parecia-me, por vezes – sobretudo quando era estudante de teologia e nos primeiros anos de padre – que, nalguns aspetos morais, a tradição da Igreja estava errada (e que eu estava certo). Hoje rio-me da minha ingenuidade (como é que eu podia pensar que a Igreja ao longo de 2000 de história via mal e eu bem!) mas na altura parecia-me sinceramente ter razão. Ainda fiz algumas intervenções em público de que hoje me arrependo. Felizmente (quase) nunca perdi o respeito pela opinião de jesuítas mais velhos a quem considerava. Esse respeito foi, várias vezes, a mão de Deus a ajudar-me a permanecer calado e ajoelhado diante da voz da Igreja, mesmo quando não a entendia.

Felizmente (quase) nunca perdi o respeito pela opinião de jesuítas mais velhos a quem considerava. Esse respeito foi, várias vezes, a mão de Deus a ajudar-me a permanecer calado e ajoelhado diante da voz da Igreja, mesmo quando não a entendia.

A mão suave no meu peito

Acabei de googlar “Vick Vaporub” e de ter a alegria de ver que a pomada continua a existir no mercado! Esta expressão – “Vick Vaporub” – acorda em mim muitas recordações de infância. A principal é o cheiro, um aroma intenso de mentol e eucalipto que aspirávamos até que as narinas ficassem a arder. Uma outra recordação é a mão quente da minha mãe a pôr-me a pomada sobre o peito. O deslizar da sua mão era curativo, fazia bem à tosse, limpava as vias respiratórias e dava-me segurança de que eu nunca estaria sozinho; que – afinal – estava tudo bem e, com um pouco de sorte, graças a essa tosse, não iria à escola no dia seguinte…

Por vezes a mão de Deus é assim, mesmo no meio das dificuldades. Bálsamo. Uma voz que sussurra baixinho que “está tudo bem” mesmo quando não sabemos quando é que vai ficar tudo bem. Temos o problema na mesma, mas Deus está ali com a Sua mão sobre o nosso peito, qual óleo de catecúmenos a dar-nos confiança na adversidade. Deus está ali e isso muda tudo, sem mudar nada. E muda ao ponto de conseguirmos tirar coisas boas das coisas más que não conseguimos mudar. Creio que é o Espírito Santo. Aconteceu-me isto no último dia 25 de dezembro: sentado numa cadeira de hospital (à espera de uns exames que revelariam depois uma pneumonia associado à Covid) tive a melhor oração de todos os natais da minha vida.

Por vezes a mão de Deus é assim, mesmo no meio das dificuldades. Bálsamo. Uma voz que sussurra baixinho que “está tudo bem” mesmo quando não sabemos quando é que vai ficar tudo bem.

A mão salvadora num oculista

Mudei recentemente de óculos e algumas pessoas reclamaram que os anteriores (pequenos e dourados, de finos aros redondos) faziam parte da minha imagem. De facto, durante mais de 20 anos acompanharam-me para toda a parte.

Mas é engraçado pensar como é que esses óculos dourados vieram parar à minha cara. Estava em Roma, num dos últimos anos de teologia, e precisava de comprar óculos. Não é nada fácil comprar óculos. É uma decisão importante: vamos ter de conviver muito perto com eles (e de os ver cada vez que nos vemos ao espelho). Ainda por cima são caros e não dá para os deitarmos fora, se depois não nos sentirmos bem com eles. Quando dei por mim tinha várias dezenas de possíveis armações sobre o balcão. Estava decidido a não complicar para não ter de passar ali o dia inteiro. Com alguma facilidade fui experimentando e excluindo armações até chegar apenas a duas. Eram muito diferentes: uma era em massa grossa e outra era a tal dos pequenos aros redondos e dourados que eu viria a comprar. Experimentava uma e depois outra e não conseguia decidir. Tinha pedido a um jesuíta meu amigo para me acompanhar e ajudar mas ele estava ainda mais confuso do que eu. O impasse era tal que cheguei a pensar que teria de deixar a compra para depois. Por uma última vez coloquei a armação em massa e olhei-me ao espelho. Foi então que reparei numa senhora sentada num sofá a olhar para mim e a chamar a minha atenção. Fez um “não” com o indicador direito e depois apontou com um dedo firme para cima do balcão, para os óculos dos pequenos aros dourados. Eram esses que eu devia comprar! Agradeci-lhe e comprei-os. Abençoada mão.

Muitas vezes na vida tenho experimentado esta mão de Deus a indicar-me, depois de algum tempo de impasse, o que devo fazer. O exemplo mais óbvio foi o do meu discernimento para entrar na Companhia. Meses de ponderação e hesitação (experimentando sucessivamente a ideia do casamento e depois a do sacerdócio…) até que um dia foi claro para mim que opção devia tomar. Uma certeza tão grande que não dava espaço para qualquer dúvida (pelo menos até hoje). Creio que foi o Espírito Santo. Senti como que a mão de Deus a dizer o que eu devia escolher e o que eu devia deixar de lado. Mas, ao contrário da mão da senhora no oculista, no fim eu entendi que a mão de Deus apontava exatamente a minha própria vontade mais profunda (aquela que frequentemente não conhecemos pois está coberta por muitos medos, manias e preconceitos).

Senti como que a mão de Deus a dizer o que eu devia escolher e o que eu devia deixar de lado. Mas, ao contrário da mão da senhora no oculista, no fim eu entendi que a mão de Deus apontava exatamente a minha própria vontade mais profunda (aquela que frequentemente não conhecemos pois está coberta por muitos medos, manias e preconceitos).

Também é verdade que, muitas vezes, eu gostaria de perceber que caminho Deus me aponta e não percebo. Creio que, nalgumas vezes, sou eu que não vejo (é preciso ter um olhar limpo para ver a mão de Deus e o meu, frequentemente é pouco livre) mas parece-me que, noutras vezes, Deus mete as mãos nos bolsos para que eu chegue lá por mim de modo que, neste processo, eu cresça em autoconfiança, liberdade e maturidade.

A mão do braço de ferro

Não sei que idade eu teria quando costumava fazer “braços de ferro” com os meus amigos. Uma mesa, dois braços e uma série de rapazes à volta a assistir. Ainda me lembro das mãos fortes e invencíveis de alguns colegas e das mãos mais facilmente derrubáveis de outros…

Veio-me esta imagem quando pensava que a mão de Deus nem sempre é aquela mão simpática que aponta o caminho, que acaricia suavemente e que dá força. A mão de Deus, por vezes, compete connosco para nos derrubar. Luta contra nós (embora o faça por nós). Por vezes leva-nos para o ringue de boxe e não sai de cima de nós enquanto não nos ouve dizer “rendo-me!”, enquanto não Lhe damos o que Ele quer. E quanto mais nos aproximamos de Deus tanto mais o Espírito Santo nos dá luta. “Por que me tratas assim?”, perguntava-Lhe Santa Teresa de Ávila. “É assim que Eu trato os meus amigos”, respondeu Deus.

Uma vez estive na cama, sem conseguir adormecer, até altas horas da madrugada, porque eu queria uma coisa e Deus queria outra. Só adormeci depois de me levantar, ir à capela (mesmo em pijama), e render-me. Voltei para a cama cheio de paz e entrei imediatamente num sono suave e profundo. Aí o Espírito Santo foi a mão terna da mãe que acaricia e adormece o filho. Mas antes tinha sido a mão do pugilista ou do amigo que não me deixou enquanto não ganhou no braço de ferro contra mim..

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Deus não está só no Céu a olhar para nós. Está também nas nossas vidas a trabalhar por nós. É tarefa do Espírito Santo. Bem O podemos imaginar como a Mão de Deus que ampara, guia, acaricia, cura, aconselha, obriga a ajoelhar, dá luta…

Como tem agido ultimamente o Espírito Santo na vida de cada um de nós?
Como tem sido a Sua mão?
Neste tempo de Pentecostes peçamos-Lhe o que mais precisamos.

 

Fotografia de Jackson David – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.