A experiência da arte, o envolvimento da água

Há um componente de rebeldia na obra terminada, justamente porque ela não presta mais a reverência ao seu autor, nem se compromete a expressar exata e indubitavelmente a sua intenção criadora.

Há um componente de rebeldia na obra terminada, justamente porque ela não presta mais a reverência ao seu autor, nem se compromete a expressar exata e indubitavelmente a sua intenção criadora.

As obras de arte são realidades outras, objetos que, se bem executados pelo artista, revelam um microcosmo à parte, ainda que informativo sobre este mesmo mundo que partilhamos. Uma das características comuns aos grandes clássicos da literatura, das mais impressionantes telas às exuberantes esculturas já feitas, é precisamente esta autonomia: cada uma, à sua maneira, fala por si, tem “começo, meio e fim”. Por isto é possível falarmos da Ilíada ou da Madona das rochas sem que sejam necessários contextualização histórica, informações sobre o artista ou esclarecimentos de ordem cultural. O leitor pensará: mas estas são informações que ajudam, sem dúvida, na compreensão da obra apresentada. Não discordo, e este é o meu ponto – e de onde eu parto para falar do filme vencedor do Oscar 2018, A Forma da Água: a experiência estética é fruto de uma contemplação, e tudo o mais que viermos a pensar sobre o filme, o quadro ou a sinfonia já é resultado de nossa análise, entendimento e também necessidade de justificação racional daquilo que experimentamos. Em outras palavras, falar de um filme a partir das intenções de seu realizador, ou das vigências sociais da década de sessenta (momento histórico em que se passa a história de The Shape of Water), ou ainda com os olhos voltados para as questões técnicas como a atuação de cada ator ou atriz é, diante disso, correr o risco de perder a experiência. Afinal, o que é que este filme recentemente premiado oferece ao seu espectador sincero, desprovido de “interferências” intelectuais? Se tomado como obra de arte que é (ninguém mais duvida da capacidade do cinema de revelar aspectos da condição humana e da Beleza que consola a nossa própria existência), apreciado como microcosmo único – aquelas duas horas de história projetadas na sala do cinema – o que, de fato, o filme de Guillermo del Toro nos informa sobre a vida?

Tentarei responder a esta pergunta, não sem antes pedir um pouco mais de paciência ao leitor, conduzindo-o pelo caminho que julgo necessário neste tópico da apreciação da arte, seja ela de que tipo for. Darei um exemplo: em 2008, o filme Tropa de Elite, de José Padilha, foi um enorme sucesso entre os brasileiros (também no exterior, como sabemos). A parte curiosa da história é que o público, segundo os produtores e idealizadores do filme, não “compreendeu” a intenção artística: pelo que se sabe, Padilha e os demais envolvidos queriam provocar uma reflexão na sociedade brasileira, especialmente sobre a truculência dos policiais, a hipocrisia das instituições e a suposta linha ténue entre bandidos e mocinhos. O que aconteceu, no entanto, surpreendeu e frustrou os artistas do filme: os brasileiros saíram das salas de cinema com um novo herói no coração – o Capitão Nascimento, no caso – e mais admiradores da ação policial do que nunca. No carnaval daquele ano, crianças e adultos vestiam fardas, simulavam a prisão de criminosos, homenageavam o poder constituído e legítimo.

O que aconteceu neste caso? Só é possível compreendê-lo se levado em conta o que venho tentando dizer sobre a arte: há um componente de rebeldia na obra terminada, justamente porque ela não presta mais a reverência ao seu autor, nem se compromete a expressar exata e indubitavelmente a sua intenção criadora. O artista de peso, génio naquilo que faz, certamente tem maiores chances de conseguir essa intimidade entre a sua inspiração original e a realização do produto final apresentado ao público. Entretanto, não há garantias, como já percebemos: a tela, a música, o romance, serão tomados por aquilo que são, realidades outras desde que saídas das mãos do seu idealizador. Em outras palavras, apenas estou afirmando que a arte adquire “vida própria”, e que a experiência da contemplação capaz de realmente consolar o espírito humano ignora o ambiente social, os motivos geradores, as disputas intelectuais em torno daquilo que se aprecia. Nas palavras da filósofa Susanne Langer, a arte tem sempre um importe vital: um segredo da vida que ela revela, por sua própria vocação enquanto meio expressivo, aos corações sensíveis e despertos.

E agora, finalmente, o que é A forma da água? Uma história de amor, bastante fiel aos elementos que perfazem um enamoramento perfeito. No ato inicial do envolvimento amoroso está o desejo de conhecer o outro, de ir em direção a ele, ao mundo daquele tu que nos desperta em meio a tantos outros mantidos anónimos. Depois, vem a descoberta, mais ou menos surpreendente, mais ou menos emocionante, do que existe dentro do outro. Do que ele gosta, como gosta, em que intensidade gosta. Por que ele odeia aquilo, venera aquilo outro, rejeita tal ideia sobre a vida? É nesta fase do enamoramento que não só as virtudes e graça, mas também a miséria que todos trazemos, revelam-se. Se ultrapassados os possíveis choques que os conteúdos do submundo do amado causarem, então dá-se a abertura para o ato final e contínuo do amante: o mergulho na sua realidade, confessada pelo que ama como seu novo estado de vida adquirido. Quem ama é não só alterado pelo outro, como também passa a partilhar de seus projetos, suas circunstâncias, seu mundo. A derradeira cena do filme de Guillermo del Toro é uma bela imagem disto: idealmente, amar é mesmo uma espécie de renascimento, haja vista a novidade que todo amor suscita ao realizar-se, envolvendo cada pequeno espaço das nossas vidas e nossa velha forma de ser. Como a água.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.