A escolha ainda é um luxo

Ninguém pode ter tudo, seja homem ou mulher. O dia tem as mesmas 24 horas para todos e qualquer escolha significa também uma abdicação ou sacrifício.

Ninguém pode ter tudo, seja homem ou mulher. O dia tem as mesmas 24 horas para todos e qualquer escolha significa também uma abdicação ou sacrifício.

Recentemente, foi publicado um artigo de opinião de uma jovem médica, em que é citada enquanto sabedoria popular a frase “não se pode ter tudo”, aplicada às mulheres e às suas escolhas de vida. O artigo gerou polémica e várias respostas. O Ponto SJ, gentilmente, pediu-me que partilhasse a minha opinião.

Antes de mais, é evidente que não se pode ter tudo. Até hoje, eu não tinha lido o referido artigo, exatamente por esse motivo. Sou mãe de duas crianças, mulher de um escritor e responsável pela minha área no local em que trabalho. Para mim, é bastante evidente que não se pode ter tudo. O dia só tem 24 horas e frequentemente passo metade delas a trabalhar. Não estava em casa quando caiu o primeiro dente à mais velha; durante a semana, nunca janto em família; reviro os olhos quando me falam em ter tempo para mim. Dedico todas as horas que me sobram aos meus, e sou realmente agradecida pela vida que tenho. No Lado B do nosso álbum familiar está o meu marido, a adiar os seus próprios planos enquanto dá banhos, cuida de crianças doentes e ajuda em trabalhos de casa em nome da minha realização pessoal e profissional. Também para ele é bastante óbvio que não se pode ter tudo.

Infelizmente, a exatidão do aforismo é mesmo a única coisa certa em todo o raciocínio da jovem médica. Esse é o principal problema do populismo: pega num elemento verdadeiro, seja o diagnóstico de um problema, seja a perceção comum de uma situação, e tolda a realidade com caminhos falsos e perigosos, com falácias e erros. Este é só mais um exemplo, com o objetivo claro de confundir e provocar.

Ninguém pode ter tudo, seja homem ou mulher. O dia tem as mesmas 24 horas para todos e qualquer escolha significa também uma abdicação ou sacrifício. Para a autora, as mulheres fazem escolhas “naturais”, que assentam em generalizações sobre o seu papel tradicional, sobre a sua verdadeira natureza. Uma constatação correta, a existência de uma escolha, é justificada por uma afirmação sem qualquer contexto, apenas assente na verosimilhança com a realidade.

A realidade portuguesa tende a provocar este género de confusões: somos um país com uma altíssima taxa de emprego feminino, o que poderia estar correlacionado com uma elevada igualdade entre sexos. Na verdade, o emprego feminino em Portugal resultou da relativa pobreza de toda a sociedade. As mulheres foram procurar emprego porque os salários dos homens não chegavam para garantir um rendimento suficiente para toda a família. Esta igualdade na empregabilidade surgiu da necessidade e não de uma procura efectiva de igualdade. Com o tempo, gerou mudanças na percepção dos direitos e da situação relativa das mulheres, à medida que as diferenças no pagamento por igual trabalho, por exemplo, ou na promoção laboral se foram sentindo. A carreira das mulheres foi durante muito tempo entendida como subsidiária do emprego dos homens, um complemento necessário para a família. A promoção a cargos de responsabilidade ou de gestão implica menor disponibilidade familiar, é uma inevitabilidade na nossa cultura profissional (uma discussão que também importa ter). Na ausência de redes familiares fortes, num contexto de habitação dispersa em aglomerados urbanos sem ligações comunitárias e, na grande maioria dos casos, com uma enorme disparidade de salários entre homens e mulheres, o grau de liberdade das mulheres nesta escolha da carreira é sempre mais pequeno. Não por qualquer determinação da natureza, mas por puro cálculo racional de interesses, a família opta pelo salário e carreira do homem, à partida mais elevado, sacrificando o potencial de crescimento da mulher.

A realidade portuguesa tende a provocar este género de confusões: somos um país com uma altíssima taxa de emprego feminino, o que poderia estar correlacionado com uma elevada igualdade entre sexos. Na verdade, o emprego feminino em Portugal resultou da relativa pobreza de toda a sociedade.

Para boa parte das famílias portuguesas, o dia é passado entre horas perdidas no trânsito ou transportes públicos, crianças fechadas durante dias intermináveis em creches ou escolas, comida aquecida rapidamente num micro-ondas para um jantar rápido enquanto se estende mais uma máquina de roupa e se passa uma camisa para o dia seguinte. Não espanta, assim, que as mulheres digam em inquéritos que, se pudessem, preferiam ficar em casa, uma resposta que tende a levantar justificações como a verdadeira natureza feminina. Nesta correria de gaiola, pergunto-me, contudo, quantos homens não responderiam o mesmo.  Nada disto tem a ver com características essenciais femininas ou masculinas, mas com o bem-estar mais básico, para homens e mulheres.

Quando digo que sou feliz e realizada com a minha vida, não quero converter ninguém ao meu ritmo e à minha peculiar conciliação de vida familiar com profissional. É a que me serve, a mim e à minha família. Tem dias bons e dias maus. Tenho amigas que deixaram de trabalhar, dedicando-se por inteiro à sua vida familiar e aos projectos pessoais que entretanto vão abraçando. Sofrem com os estereótipos injustos sobre a sua escolha de vida, numa curiosa inversão. Como sempre, a tendência humana é para o julgamento e condenação do que nos é estranho. Respeito-as imensamente, e frequentemente as invejo pelo equilíbrio que parecem ter na pressa dos dias. Mas, tanto no meu caso como no caso das minhas amigas, somos umas privilegiadas, dando-nos ao luxo de fazer escolhas. Tal como a jovem médica, que devia, antes de mais,  ter noção do seu próprio privilégio. Ter liberdade para escolher ainda é um privilégio de elites em Portugal, e essa é a maior tragédia deste debate.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.