A vida traz consigo momentos de mudança, cruzamentos que definem novos caminhos ou novas atitudes. O Evangelho de S. Lucas apresenta-nos uma dessas situações na vida de Cristo: consciente que a sua missão estava a chegar a um ponto crucial, “Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalém” (Lucas 9,51). Em boa verdade, esta tradução esconde que a resolução se mostrava num rosto fixo e determinado… O Senhor, assumindo tudo o que tinha vivido até esse momento e os tempos que se aproximavam, entendeu que se devia encaminhar para Jerusalém, a cidade santa, morada de Deus. O Filho do Homem sabia que essa era também a sua casa. Contudo, a existência do “Santo dos Santos” no Templo foi trazendo à cidade de Jerusalém uma atitude coletiva de auto-deslumbramento, em relação à qual Jesus mostra pouca complacência: “virá o dia em que, de tudo isto que estais a contemplar, não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”. A afirmação tão clara do fim de um tempo – e do Templo – põe em crise os discípulos, que o interrogam sobre o “quando” e o “como”. E Jesus responde-lhes: “tende cuidado em não vos deixardes enganar, pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu’; e ainda: ‘O tempo está próximo.’ Não os sigais. (…) Há-de erguer-se povo contra povo e reino contra reino. Haverá grandes terramotos e, em vários lugares, fomes e epidemias; haverá fenómenos apavorantes e grandes sinais no céu”. Jesus fala-lhes ainda de perseguições, polémicas e julgamentos, prometendo não faltar com o seu Espírito e “palavras de sabedoria”. Por fim assegura-lhes: “pela vossa constância é que sereis salvos” (Lucas 21, 5-19).
Ao iniciar a Quaresma de 2023, estas páginas do Evangelho parecem escritas para o nosso tempo: uma guerra primária na Ucrânia sem fim à vista, um terramoto devastador na Turquia e Síria, um relatório sobre abusos sexuais que envergonha, compromete e julga a Igreja em Portugal.
Ao iniciar a Quaresma de 2023, estas páginas do Evangelho parecem escritas para o nosso tempo: uma guerra primária na Ucrânia sem fim à vista, um terramoto devastador na Turquia e Síria, um relatório sobre abusos sexuais que envergonha, compromete e julga a Igreja em Portugal. Se a isto somarmos as preocupações ambientais e os efeitos da pandemia, é caso para perguntar “que tempos são estes?” e “como os podemos viver?”. É comportável deixar-nos tocar pelo sofrimento de tantos inocentes na Ucrânia ou no Próximo Oriente? Mais perto de nós, é possível suportar e superar a realidade tão chocante e complexa dos abusos sexuais (de poder e consciência…) por parte de membros da Igreja? Como respeitar e comungar com a dor das vítimas, sem que isso desencadeie espirais racionalizantes ou depressivas? O que significa escolher a “constância” para atravessar os desafios deste tempo?
Na Jerusalém para onde Jesus se encaminha, a virtude, bondade, justiça e fidelidade de Deus – que Ele encarna – cruzam-se com o pecado, maldade, injustiça e infidelidade humanas. Cruzam-se na Cruz. A porta de um futuro ressuscitado abriu-se porque Jesus viveu tudo isso amando, perdoando e sem abandonar a confiança naquele a quem chamava “Pai”, mesmo quando se sentiu abandonado. Ele é o justo inocente que sofre, o “cordeiro trespassado” diante dos nossos olhos, ainda que demasiadas vezes desviemos dele o rosto. Ele não passou uma “piedosa esponja” sobre a violência, a mentira ou indiferença, mas superou-as pela sua paz, verdade e compaixão. Identificou-se com os últimos para os resgatar – de igual para igual – e para nos mostrar até onde vai o seu Amor. Revelou assim – em Jerusalém – o caminho de uma santidade pascal e um dos lugares existenciais onde o encontramos certamente: os mais pobres e indefesos. Os que seguem a Cristo são chamados a cuidar deles, e por isso precisam de pedir sincero e consequente perdão quando acontece o contrário.
Na mensagem para a Quaresma deste ano, o Papa Francisco sugere-nos que o caminho para a Páscoa seja percorrido em atitude sinodal, ou seja, uns com os outros. Consciente da dificuldade do “trilho” que sobe para o monte santo, o Papa deixa duas pistas: a disponibilidade para escutar e a superação dos medos que paralisam. Em tempos de mudança, mudemos também a atitude, escutando de novo a Palavra de Deus e escutando-nos uns aos outros com o coração aberto. Em tempos de mudança levantemo-nos confiantes, não confundindo a árvore com a floresta e lembrando que a vida floresce até nas condições mais agrestes, pois o Amor é mais forte que a morte. Não é possível fazer “todo o bem do mundo”, nem ir ao encontro de todas as vítimas, mas existe certamente um bem ao meu alcance, o próximo de quem posso cuidar. A constância nesses gestos e atitudes é o caminho de um futuro salvo e ressuscitado por Deus. Quero dirigir-me resolutamente para Jerusalém?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.