A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e o Israel da História

Livro aborda a relação entre a Bíblia e a História. É da autoria do P. Francisco Martins e chega hoje ao público. Apresentação está prevista para os próximos dias 28, 30 e 2 em Lisboa, Porto e Tomar. Ponto SJ publica a introdução da obra.

Livro aborda a relação entre a Bíblia e a História. É da autoria do P. Francisco Martins e chega hoje ao público. Apresentação está prevista para os próximos dias 28, 30 e 2 em Lisboa, Porto e Tomar. Ponto SJ publica a introdução da obra.

Chega hoje às bancas o livro “A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e o Israel da História”, uma obra da autoria do P. Francisco Martins, jesuíta português que é atualmente professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. O livro é editado pela Temas e Debates e será lançado no dia 28, às 18h30, na Brotéria, em Lisboa, no dia 30, às 18h30, no CREU, o centro universitário dos jesuítas no Porto, e no dia 2 na Igreja de Santa Maria dos Olivais, em Tomar.

O Ponto SJ publica hoje, em antecipação, a introdução do livro que espelha o seu propósito e nos abre portas para o que lá podemos encontrar.

 

1.”E a Bíblia tinha mesmo razão”

Há quase setenta anos atrás, em 1955, o jornalista e ensaísta alemão Werner Keller escreveu o  que viria a tornar-se um dos maiores best-sellers da literatura de divulgação científica. Intitulado E a Bíblia tinha mesmo razão, o livro propunha-se mostrar, como se diz na introdução, que as descobertas arqueológicas então disponíveis confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito ou lenda ou simplesmente folclore tinha realmente sucedido e, de acordo com o autor, era possível prová-lo cientificamente. Animado por tão ambicioso objetivo, Keller não se limitava a querer dar conta de eventos cuja historicidade seria, porventura, mais fácil de provar, como a conquista da terra de Canaã (a “terra prometida”), relatada no livro de Josué, ou a fundação do poderoso reino de David e Salomão, de que se ocupam os livros de Samuel e dos Reis. Para o autor alemão, interessava estudar também aqueles episódios cuja dimensão ou espetacularidade ofereciam maiores razões ao ceticismo,  como o dilúvio universal (Gn 6 9) ou a dez pragas que afligiram o Egito (Ex 7,8 12,36) ou ainda o dom do maná que aliviou a fome ao povo de Israel no deserto (Ex 16; Nm 11,1-15).

O método de Werner Keller consistia, no caso destes acontecimentos mais extraordinários, em  ir à procura de possíveis indícios naturais. Do dilúvio universal, ao qual alude não só a Bíblia,  mas também a literatura em acádico, chegaram-nos as marcas numa camada de lama no subsolo da cidade de Ur (na foz do rio Eufrates; atualmente no sul do Iraque) que, de acordo com Keller, teria resultado de uma inundação de dimensões catastróficas que teria abalado o mundo antigo  por volta de 4000 a.C. Confirmava-se, assim, não só o evento, mas até a datação bíblica! Sobre as “dez pragas do Egito”, o único milagre que é ainda preciso aceitar é a inusitada concentração de um conjunto de fenómenos que, sendo comuns e conhecidos, infligiam estrago considerável e inspiravam temor e tremor. Aliás, afirma Keller, se assim não tivesse sido, como se explicaria que o faraó tivesse deixado partir uma tão grande quantidade de mão-de-obra escrava? Quanto  ao maná do deserto, a zoologia oferece a solução: o que salvou a vida ao povo de Israel durante  a travessia do deserto foram as secreções de um inseto-escama que se nutre da seiva dos tamariscos. De aspecto resinoso e sabor meloso, este “maná” presta-se a ser recolhido cada manhã e é uma rica fonte de energia. Novamente, talvez o único milagre que seja ainda preciso conceber é a abundância e regularidade deste fenómeno durante os quarenta anos que durou a caminhada através do deserto do Sinai até à terra prometida.

As explicações que Werner Keller oferecia para os episódios mais inverosímeis e a confiança com que procedia à demonstração de que a Bíblia descrevia com admirável precisão historiográfica o passado do povo de Israel contagiou grande número de leitores e transformou o livro num sucesso editorial. Traduzida em mais de vinte idiomas diferentes, a obra vendeu cerca de um milhão de exemplares só nos primeiros cinco anos e conheceu várias reimpressões e edições  (a mais recente das quais em 2009), estando ainda hoje disponível no mercado. [1]

2. “A Bíblia tinha mesmo razão?” Os objetivos e plano do livro

O título do livro que o leitor tem entre as mãos transforma a afirmação de Werner Keller numa pergunta, substituindo a certeza pela dúvida. O propósito, contudo, não é oferecer uma análise dos resultados a que o autor alemão chegou, seja para os refutar seja para lhes dar “nova vida”. Na verdade, ainda que aluda, em tom provocatório, ao título daquele famoso best-seller, a presente obra adota uma perspetiva totalmente diferente. Para os especialistas na História do Israel Antigo, o livro de Keller é, possivelmente, o exemplo mais eloquente do concordismo pseudocientífico que, como veremos no primeiro capítulo, caracterizou a interação entre a arqueologia e a Bíblia nos começos e continua ainda hoje a “tentar” alguns autores e demasiados (!) leitores.

A esperança que se transforma em ansiedade por mostrar a perfeita concordância entre os textos e as “pedras” acaba por sacrificar tanto a credibilidade da Bíblia como a qualidade da ciência, oferecendo a ilusão da “prova” ao que, muito provavelmente, é mais forma que substância. No fundo, dá-se à Bíblia a “razão” que não pode nem quer ter.

O livro que agora se introduz parte de outros pressupostos e tem um objetivo mais “modesto”: trata-se de investigar o que podemos saber, com rigor científico, sobre a História do povo que nos legou, na Bíblia, o relato das peripécias que marcaram a sua existência e deram corpo à sua identidade coletiva. Assim sendo, move-nos, em primeiro lugar, o esforço de reconstruir – tanto quanto as fontes disponíveis nos permitem – o passado histórico de uma determinada população ou grupo de populações que, pelo menos a partir de certa altura, parecem ter desenvolvido uma consciência nacional relativamente estável. Interessa-nos, por isso, responder às perguntas que animam qualquer outro estudo do mesmo género, a saber: que condições sociais propiciaram a emergência desta entidade étnica, como e quando surgiu, que expressão política adquiriu ao longo dos séculos, que desafios enfrentou na salvaguarda da identidade coletiva, etc.

Assim sendo, move-nos, em primeiro lugar, o esforço de reconstruir – tanto quanto as fontes disponíveis nos permitem – o passado histórico de uma determinada população ou grupo de populações que, pelo menos a partir de certa altura, parecem ter desenvolvido uma consciência nacional relativamente estável. Interessa-nos, por isso, responder às perguntas que animam qualquer outro estudo do mesmo género, a saber: que condições sociais propiciaram a emergência desta entidade étnica, como e quando surgiu, que expressão política adquiriu ao longo dos séculos, que desafios enfrentou na salvaguarda da identidade coletiva, etc.

Ao mesmo tempo, porém, também nos motiva o desejo de compreender melhor a relação entre a Bíblia e a História, isto é, entre as tradições da memória comum e os eventos e circunstâncias que as inspiraram. O lugar que as histórias da Bíblia ocupam no horizonte e experiência crentes e, de forma mais geral, no imaginário da cultura ocidental justifica que se dê particular atenção ao valor e características desta fonte e que se estruture a discussão tomando-a como referência. Não se trata, contudo, de tentar forçar o passado a conformar-se com as reminiscências bíblicas,  mas de abordar o esforço de reconstrução histórica partindo das interrogações que “alimentam” a curiosidade e que, muito provavelmente, são a razão pelo qual a maioria dos leitores se presta a ler este livro; interrogações como “Que sabemos sobre Abraão e Moisés?” ou “Quão glorioso foi o reino de David e Salomão?”.

Nesse sentido, depois de um capítulo dedicado à apresentação e discussão das fontes utilizadas, hoje em dia, na reconstrução da História do Israel Antigo (capítulo I), o livro procede de acordo com as etapas da “história sagrada”, de Abraão até à época dos Asmoneus. O segundo capítulo analisa os relatos patriarcais sob o pano-de-fundo da situação na região do Levante na primeira metade do segundo milénio a.C. O êxodo do Egito é o assunto em discussão no capítulo seguinte (III), onde se oferece também uma panorâmica da interação entre o país dos faraós e os  povos cananeus no segundo milénio a.C. O quarto capítulo é um capítulo temático, dedicado a Yahvé, o Deus bíblico, e à emergência do monoteísmo. Retomando o fio da História, no capítulo seguinte (V), coloca-se a questão do surgimento de Israel na terra de Canaã, partindo da descrição da conquista no livro de Josué e confrontando o panorama traçado com o que é dito no livro dos Juízes e os dados que nos chegam da arqueologia. A controvérsia a propósito dos inícios da monarquia (séc. X a.C.) e das figuras dos reis Saul, David e Salomão ocupará a nossa  atenção no capítulo seis. Os dois capítulos seguintes – os capítulos sete e oito – são consagrados à História dos reinos de Israel, o reino do norte, e de Judá, o reino do sul, respetivamente.  Partindo do relato contido nos livros dos Reis, exploraremos etapa por etapa o período entre o  século X e o século VI a.C., prestando especial atenção ao contexto geopolítico. O nono capítulo tem como temas o fim do reino de Judá em 586 a.C., o exílio de Babilónia e o regresso e  reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém durante o período persa (séc. VI-IV a.C.).  Trata-se de explorar não só o que aconteceu naquela fatídica data, mas também as múltiplas e  variadas consequências deste desastre nacional, da abrupta rutura demográfica ao surgimento da diáspora e ao “nascimento” da Bíblia. No décimo e último capítulo, apresenta-se um resumo da História de Judá durante o período helenístico (séc. IV-I a.C.) e discute-se a transformação que põe fim à História do Israel Antigo e dá início ao Judaísmo. Na conclusão, retomamos a pergunta que dá título ao livro para esboçar uma síntese do percurso realizado e propor uma  possível resposta.

3. Duas notas finais

Ao concluir esta introdução, permitam-se-me ainda duas notas, a primeira das quais de natureza  terminológica. Como se percebe pelo plano do livro, os textos bíblicos em análise são principal, senão mesmo quase exclusivamente, provenientes do chamado Antigo Testamento.[2] A “Bíblia” do título é, por isso, uma designação genérica, já que parte das Escrituras cristãs, em particular o chamado Novo Testamento, não será objeto de estudo. Trata-se de reconstruir, na medida do possível, a História do Israel Antigo. Por esta expressão – que também se presta a equívocos – entende-se designar as populações que se constituíram como grupo étnico (povo), desenvolveram uma consciência coletiva comum e se organizaram politicamente em dois reinos (os reinos  de Israel, ao norte, e Judá, ao sul) nos dois milénios anteriores à era cristã. Fruto desta História e também e principalmente da Bíblia, o termo “Israel” vai adquirir uma tonalidade mais explicitamente teológica e passar a indicar a totalidade do povo eleito por Yahvé, num processo que, como veremos, contribuiu para obscurecer as diferenças regionais (entre norte e sul) e reduzir à irrelevância a valência político-social deste nome próprio (enquanto designação do reino histórico de Israel). O livro procurará retificar esta situação, respeitando, porém, o que nesta “mutação” é reflexo da evolução da própria autoperceção coletiva.

A segunda nota destina-se, em particular, aos crentes – sobretudo, judeus e cristãos – para quem a Bíblia além de um “clássico” da literatura mundial, é também a Palavra de Deus, isto é, texto inspirado pelo qual a divindade se dá a conhecer aos homens e mulheres de todos os tempos e lhes manifesta o seu desígnio para o mundo e para a História. Ao empreendermos esta investigação histórica sobre o passado do povo de Israel, recorremos à Bíblia como fonte de informação e tratamos as suas afirmações com o necessário distanciamento crítico. O propósito, porém,  não é, de forma alguma, descredibilizar as Escrituras. Pelo contrário, trata-se de celebrar a sua qualidade literária e reconhecer o inegável enraizamento histórico destes textos; aspetos inteiramente compagináveis com uma visão “equilibrada” da revelação divina. Na verdade, o génio humano das Escrituras é precisamente esta sua capacidade para tornar a História um lugar habitado por Deus, servindo-se para isso de todas as ferramentas literárias que a arte e o engenho  já então tinham concebido: do mito à lenda, da poesia à parábola, do provérbio à notícia. Nesse sentido, empenhar-se em reconstruir a História por detrás das histórias de Israel é simultaneamente um serviço à ciência e aos textos, porque abre-nos à inteligência mais profunda e madura do que se quer comunicar e, para quem crê, da forma como Deus o desejou comunicar. Recusar-se a percorrer o “caminho mais longo” da interpretação em nome de um certo “encastelamento” fundamentalista seria, por isso, o maior dos “pecados”.

 

[1] A mais recente edição em português do Brasil: KELLER, Werner, E a Bíblia tinha razão, 3ª edição, São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.

[2] Nos últimos decénios, fruto dos avanços no diálogo judaico-cristão e em nome do rigor científico, muitos autores abandonaram as designações “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” em favor de expressões mais neutras do ponto de vista da História das religiões, em particular, “Primeiro Testamento e “Segundo Testamento#, o “Bíblia Hebraica” e “Testemunho Apostólico”. Para evitar equívocos, tratando-se de um livro para não-especialistas, usar-se-á a expressão Antigo Testamento, sem que tal implique, contudo, um juízo de valor sobre o conteúdo dos textos ou sobre a religião, o Judaísmo, que os reconhece como testemunho escrito da revelação divina.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.