Há palavras que vão sendo deixadas a uso exclusivo de certos contextos. Parece-me que isto acontece com a esperança, muitas vezes associada a um uso religioso ou confessional. De facto, a história das religiões está cheia de narrativas de esperança, de personagens que protagonizam episódios de espera, de anseio, de caminho. Mas a esperança, mais do que numa religião, existe na essência do homem.
A esperança tem que ver com a capacidade inata que todos temos de imaginar, de sonhar com algo que ainda não é. Todos já experimentámos a força com que a imaginação nos toma, como nos invade, como nos impele ao que desejamos. A imagem interior reclama a nossa atenção e suscita em nós o ensaio de formas para a alcançar – este ensaio, a que podemos ou não aderir, é a esperança! Mais que uma faculdade estática, é um exercício de agilidade na relação com o que nos povoa interiormente. Esperar não tem tanto que ver com um algo ou um Outro a quem me dirijo, mas com o caminho que desenho para o alcançar.
Pela esperança, a imaginação em bruto se torna uma ferramenta afiada; só então pode ser usada para esculpir cenários e lugares de Beleza. É constitutivo do Homem ter esperança, porque é do Homem ter um ideal ao qual aspira, que dá direcção aos seus passos. É pobre olhar a esperança só e apenas usando uma gramática confessional. Precisamos de auscultar a esperança até ao seu limite profundamente humano, deixando que esta noção do todo nos inquiete e joeire e questione a maneira como a esperança é, para cada um, um caminho sólido de vida.
Stig Dagerman, no seu ensaio A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer (trad. Paula Castro e José Daniel Ribeiro. Lisboa, Vasco Santos Editor, 2018), oferece-nos uma narração da sua (des)esperança contada na primeira pessoa. Encontramos um homem que luta com uma profunda sede de consolo, com a fugacidade do que encontra nas fontes da sua satisfação. Desde logo, agride-nos a sua crueza, que apresenta despida a batalha entre a sede de gozo e a profunda banalidade dos prazeres alcançados. Entre a “ávida boca do excesso e (…) a amargura da avareza, que de si mesma se alimenta” (p.17), Dagerman conta-nos, como a um confidente, os seus anseios e a dureza do seu caminho. A claustrofobia das descrições do seu quarto contrasta com sublimes retratos do mar e da floresta. Vemos um homem dividido, ciente do seu talento, da sua força que se verte em fraqueza, em luta consigo no meio de um ambiente excessivamente transparente.
Sobre tudo isto, parece haver um horizonte que paira suavemente: “O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exactamente o seu contrário: é o perdão que busco” (p.18). A sua sede de redenção é, como em todos nós, um grito existencial profundo, que clama pela harmonia primeira, pelo retorno a um qualquer estado de inteireza a que, incautos, parecemos ter sido removidos. Precisamos de chegar ao fim deste opúsculo para encontrar a tímida esperança que se vai desenhando, ora lacerada, ora recosida, nas páginas deste caminho:
É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me a um fim que me inebria: um consolo que mais do que apenas isso, e mais que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.
É certo que a clareza deste olhar contrasta com o trágico desfecho da sua vida. Este homem, que conseguia desenhar a esperança nesta finura, foi morto pelo seu próprio desespero, por não conseguir alcançar esta mesma meta que tanto ansiava. Este dramatismo é necessário para trazer luz ao desejo vital de encontro que cada um traz em si, gritando no silêncio íntimo e por vezes obscuro da alma.
Que tem isto que ver com a esperança? Porquê propor uma leitura tão dura uma semana antes do Natal, deste Natal tão atípico que este ano nos é dado?
A tensão que acompanhamos neste livro-roteiro é a mesma que agora vivemos com mais intensidade, com mais fulgor e também com mais cansaço, mas que sempre nos acompanha. Neste caso extremo, tomamos contacto com a lucidez e a beleza da realidade crua, sem verniz.
O Natal que vamos viver, neste ano, é insolitamente diferente. Não teremos muitas das tradições e dos rituais que fomos cultivando com o tempo: as preparações, o buliço dos dias antes, o tempo de reunião com a família e tantas outras pequenas grandes coisas que celebramos, ano após ano, como uma liturgia usual. Isto frustra-nos, desanima-nos, e isso é legítimo.
Mas precisamente por esta diferença insólita, por ser escandalosamente diferente do “normal”, pode ser um dom extraordinário. O que naturalmente pode ser tempo de amargor, invadido pela frustração do que não pode ser, é simultaneamente uma oportunidade para um caminho de consciência, da real consciência da imensidão de coisas a que nos habituamos, no seu justo valor. Escusado será dizer como é exigente fazê-lo: da solidão à impotência, sentimo-nos frágeis e cansados; estamos fartos de máscaras e confinamentos que, sobre todas as geografias, constrangem a nossa alegria, as nossas relações; falta-nos gramática para aprender a ler as nossas feridas… Este exercício, aparentemente singelo, exige um contacto honesto com a própria limitação, com as expectativas e desejos, com o Natal a que queremos chegar.
Ainda assim, consciente desta dureza, proponho que, acompanhados deste pequeno livro, nos deixemos afectar pela sua lucidez. Donde, senão da realidade concreta, como lugar escuro, como dum estábulo fedorento, poderá brotar a luz que nos faça ver o caminho estreito que leva à meta? Se o Natal é tempo de esperança para todos – porque é tempo de encontro com os outros, com o Outro – deixemos que este grito profético nos toque e espante, sabendo que “[a] humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine.” (p.18)
Foto: Knut Troim, Unsplash