No romance de Alessandro Baricco, Questa Storia, Ultimo é um rapaz com sombra d’Ouro – um daqueles que tem alguma coisa de especial, mas ninguém sabe muito bem dizer porquê. Não o podemos perder verdadeiramente, pois acabamos sempre por encontrá-lo, e a sua presença nota-se na sala, ainda antes de o termos visto ou de ter produzido qualquer ruído.
Era um homem apaixonado por estradas. E depois da morte o visitar – ou melhor, visitar um parente seu, que com Ultimo a morte já se tinha encontrado por diversas vezes – partiu para a guerra, na esperança de encontrar a beleza que tinha perdido. No meio das trincheiras, a crua realidade gera a desilusão, destruindo o entusiasmo jovial do grupo de soldados. Mas, como quem dá com uma mão e tira com a outra, essa mesma realidade atroz dá-lhes qualquer coisa para o qual não encontram palavras:
Partilhavam, além da quotidiana atrocidade da trincheira, aquela sensação de serem vida no estado puro, formações cristalinas de uma humanidade restaurada à sua simplicidade primitiva. Diamantes, heróis. Aquela sensação, não a poderiam explicar a ninguém, mas cada um deles a reconhecia no olhar do outro, como num espelho – assim a fazia sua, e era esse o segredo com o qual cimentavam a própria fraternidade. [1]
Ainda que a nossa vida não seja vivida numa trincheira, consiste, pelo menos em parte, numa experiência que ninguém sabe verdadeiramente explicar. Uma experiência quotidiana; simples; pessoal, contudo partilhada; intraduzível, porém compreensível.
Parece que somos de algum modo lançados na vida – numa vida concreta. Que por sua vez é ela própria lançada num mundo de coisas e relações. Não fomos nós que escolhemos e, tantas vezes – soubesse Deus! –, escolheríamos modos diferentes se pudéssemos. Parece então que, nosso quotidiano, somos responsáveis por qualquer coisa ainda antes de o termos escolhido. Temos um outro alguém diante de nós, ainda antes de escolhermos livremente amá-lo ou rejeitá-lo, olhar ou passar indiferentes. Somos eticamente obrigados a fixar o olhar antes da possibilidade da indiferença. Esta quotidianidade é composta por uma teia de relações que me formam. Isso implica que nenhum de nós é quem é sem o outro, que também já é alguém, com uma vida e uma história concreta. Mas podemos ainda ir mais longe: eu não “sou”, não existo, sem o outro que existe. Ninguém “é” sozinho.
Ninguém a sabe muito bem descrever, mas percebemos que viver é algo que já lá está ainda antes de eu me aperceber disso. Muito antes de eu fazer algum juízo sobre aquilo que vivo, essa experiência quotidiana já me precede. Como uma criança, que vive sem saber o que está a viver. Ou como um leitor, tão empenhado na história, que nem se deu conta que já passaram quatro paragens desde aquela em que devia ter saído.
Assim, o desafio maior talvez seja encontrar as palavras justas para aquilo que experimento. Há momentos na vida que perdem o que têm de fundamental quando tentamos colar-lhes uma palavra. Serão, porventura, os tempos que consideramos mais reais, onde a alegria e a dor se interlaçam de modo puro – diferentes, mas indistinguíveis. Onde estamos inteiros, e, por isso, presentes com toda a nossa complexidade. Temos a necessidade e a urgência de dizer aquele momento, de traduzi-lo em letras e sílabas. Mas qualquer palavra fica aquém da verdade do que aconteceu. É aí, quando parecemos presos à inexprimibilidade da vida, quando uma certa solidão existencial parece ser inevitável, que descobrimos uns olhos que brilham à mesma frequência dos nossos. A vida verdadeira é indizível, e, no entanto, vejo o indizível da vida do outro.
Neste encontro, olhos nos olhos, rosto no rosto, percebo que, de facto há um outro. Um irmão. Há alguém além de mim, e que vive tal como eu – seja nas trincheiras, com Ultimo, ou a estudar numa biblioteca.
[1] Alessandro Baricco, Questa Storia [tradução minha]