P. António Vieira: o espanto de uma descoberta impossível

Foi apresentado ontem o original da Clavis Prophetarum, do P. António Vieira, documento que estava desaparecido há 300 anos. Foi localizado na Biblioteca da Universidade Gregoriana em Roma, em julho de 2019.

“Como foi possível acontecer’?”. Foi dando conta do seu espanto que a investigadora responsável pelo achado, Ana Travassos Valdez, deu a conhecer, na tarde desta segunda-feira, a história da descoberta do manuscrito original da Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas) do P. António Vieira. No começo de julho de 2019, a investigadora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa esteve na Universidade Gregoriana, em Roma, para participar na conferência internacional da Sociedade de Literatura Bíblica, uma iniciativa que estava prevista para a Índia e que à última hora tinha sido transferida para Roma. Ana Valdez explica que quando se apresentou ao Reitor da Universidade Gregoriana, o jesuíta português, P. Nuno Gonçalves, este lhe perguntou se podia fazer alguma coisa por ela enquanto estivesse em Roma. Sem cerimónias, a investigadora quis saber se seria possível ver os manuscritos da Clavis Prophetarum arquivados na Biblioteca da Gregoriana. A resposta foi afirmativa.

A intenção de Ana Valdez era contactar com dois manuscritos a que apenas tinha tido acesso através de cópias. Ao chegar à sala de leitura verificou com surpresa que além dos manuscritos requisitados, identificados como 354 e 359, lhe foram também disponibilizados mais dois manuscritos cuja existência desconhecia: o 1165/2 e o 1165/1. Depois de consultar os manuscritos 354 e 359, passou ao 1165/2 que rapidamente desvalorizou por lhe parecer uma “copia demasiado moderna”. Mas, ao olhar para o volume com mau aspeto que inicialmente tinha deixado de lado, o 1165/1, veio a surpresa. A investigadora explica: “folhei-o, revirei-o, olhei e fiquei muito inquieta. Parecia uma coisa que não podia ser.” Depois de comparar aquele manuscrito com os registos que tinha sobre os outros manuscritos conhecidos da mesma obra, o espanto aumentava: “Poderia ser? Não, impossível. Estava a sonhar de certeza. Todos sabíamos que o original da Clavis não existia”.

Quando o diretor do arquivo da Universidade Gregoriana, o P. Martin Morales, sj, se aproximou dela, a investigadora portuguesa partilhou as suas inquietações: “não pode ser verdade”. O jesuíta replicou: “porque achas que não pode ser?” Ao longo de vários dias de investigação as certezas iam crescendo juntamente com a insegurança. Para que a crescente certeza de Ana Valdez pudesse ser confirmada, era necessário que Arnaldo do Espírito Santo, investigador responsável pela edição crítica da Chave dos Profetas, pudesse analisar o documento então encontrado. Isso viria acontecer quando Ana Valdez regressou a Roma acompanhada por este investigador em janeiro de 2020. Nessa ocasião, confirmaram-se as certezas. Os investigadores regressariam a Roma cerca de um mês depois para assistir aos primeiros testes materiais com vista à validação da autenticidade do manuscrito que aconteceria a 20 de fevereiro. Os resultados dos primeiros testes eram congruentes com a hipótese de se tratar do texto original de Vieira.

Seriam ainda necessário mais testes laboratoriais que confirmassem a datação bem como uma análise cuidada do seu conteúdo. Havia muitas perguntas por responder. Mas o primeiro confinamento devido à COVID-19 atrasaria o processo, impedido a consulta direta do documento ao longo de dois anos. Ao longo desse tempo, os meios tecnológicos permitiram a digitalização e que o documento fosse estudado. Apenas há duas semanas os investigadores portugueses voltaram a ter contacto direto com o manuscrito original da Clavis Prophetarum, já na sua versão restaurada. E agora, depois de testes laboratoriais feitos por diversas disciplinas, não subsistem dúvidas de que o original do P. António Vieira existe mesmo. “O trabalho para desvendar os segredos da Clavis Prophetarum ainda agora começou”, concluiu Ana Valdez no final da sua intervenção, na sessão de apresentação da descoberta, que decorreu ontem, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL).

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Arquivo Pontifícia Universidade Gregoriana (Direitos Reservados)

Uma alegria intelectual partilhada

A importância da descoberta do manuscrito original do P. António Vieira foi assinalada na sessão pública da sua apresentação que juntou dezenas de pessoas em Lisboa e também em Roma. O trabalho agora apresentado resulta de uma colaboração entre a Universidade Pontifícia Gregoriana, da Companhia de Jesus, e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Também a Brotéria é parceira deste processo de investigação desde o seu início.

A sessão foi aberta com uma intervenção do diretor da FLUL, Miguel Tamen, que enalteceu o trabalho dos investigadores Arnaldo do Espírito Santo e Ana Tavares Valdez que foram capazes de descobrir um documento “que uns achavam não existir e outros consideravam irremediavelmente perdido”. Tamen destacou ainda a “alegria intelectual” da descoberta que permitirá que “seja finalmente lido um livro de Vieira. E que livro”, considerou o diretor da FLUL. Miguel Tamen agradeceu finalmente o empenho da Universidade Gregoriana, onde estava arquivado o manuscrito agora apresentado.

Já Arnaldo do Espírito Santo, na sua intervenção, recordou a génese e a cronologia da redação do documento que se estendeu ao longo de vários anos e que aconteceu em locais variados. Referindo-se a algumas cartas de Vieira, o investigador da FLUL destacou a importância que o próprio autor dava a esta obra, que foi dando a ler a diversas pessoas cuja a identidade é desconhecida.

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O manuscrito estava na mesa em que se encontrava os intervenientes da Universidade Gregoriana

A sessão de apresentação contou também com uma ligação à Universidade Gregoriana, em Roma. Numa mesa em que se encontrava exposto o Manuscrito original da Clavis Prophetarum, estavam o P. Martin Morales, sj, diretor do Arquivo da Universidade, Irene Pedretti, restauradora, e Giullia Venezia, conservadora e responsável pela digitalização do manuscrito, e o P. Nuno Gonçalves, reitor da universidade.

O P. Martin Morales, sj explicou que o documento agora encontrado faz parte de um fundo da Universidade Gregoriana que reúne cerca 6000 códices representativos da história da Companhia de Jesus no que respeita às áreas da teologia, filosofia, retórica e matemática e datados entre 1521 e 1773, data da supressão da Companhia de Jesus. Explicou ainda que uma compreensão cabal do documento exige um trabalho exigente de conservação e fixação do texto, compreendendo o que distingue o nosso modo de pensar do modo de Vieira.

O P. Francisco Mota, diretor geral da Brotéria, parceira desta investigação, congratulou-se com o trabalho realizado, destacando a consciência de se estar diante de uma importante descoberta académica, histórica e cultural. O jesuíta realçou a “singular importância da herança de Vieira para a Companhia de Jesus, mas também para o nosso país” e sublinhou que esta descoberta nos recorda a importância de “termos profetas e profecias, sonhos, homens e mulheres atentos ao que a construção do futuro implica”.

Na sua intervenção, o P. Nuno Gonçalves, reitor da Universidade Gregoriana, destacou o facto de a “Clavis Prophetarum ser a obra “que o próprio Vieira considerava a mais importante do seu longo percurso de jesuíta, missionário, pregador, escritor e diplomata; e, ao mesmo tempo, a obra em que mais é visível o seu génio profético, apocalítico e visionário.” Numa nota mais pessoal, manifestou o contentamento por esta descoberta ter sido feita “durante o mandato de um português como reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana”, mas também num momento importante da história do Brasil: “alegra-me que um manuscrito tão importante para a história luso-brasileira seja dado a conhecer no ano em que se comemoram os duzentos anos da independência do Brasil. ”

No encerramento da sessão, o Reitor da Universidade de Lisboa, Luís Ferreira, não escondeu o emoção que sentiu com esta descoberta, enaltecendo a minúcia do trabalho de investigação da equipa responsável pela descoberta do manuscrito que “teima em ser lento” num tempo marcado pela pressa. Evocou ainda a importância da figura de Vieira cuja obra maturada na fé se desenvolveu num contexto de profunda mutação cultural, importância reconhecida entre outros por Pessoa, que o considerou o “imperador da língua portuguesa”.

Documento ficará em Roma 

Já depois do final da sessão, Ana Travassos e Arnaldo do Espírito Santo reforçaram, em declarações aos jornalistas, o enorme trabalho que está por fazer para que o documento possa ser cabalmente compreendido. Está a ser preparada uma edição crítica da obra de Vieira e a transcrição cuidada do manuscrito permitirá também a publicação de uma edição bilingue em latim e inglês, tornado a obra internacionalmente acessível a um maior número de investigadores.

Em conversa com os jornalistas, os investigadores revelaram também aspetos curiosos como o de uma colagem encontrada no manuscrito feita recorrendo a farinha de mandioca. Quanto à possibilidade do manuscrito ser trazido para Portugal, Arnaldo do Espírito Santo explicou que essa mudança não faria sentido. Esta obra deve continuar enquadrada “no contexto de um Arquivo da Companhia de Jesus, que não é um arquivo italiano, mas de uma ordem com dimensão internacional”, explicou.

Reveja aqui a apresentação pública do original da Clavis Prophetarum.

Foto em destaque: Arquivo Pontifícia Universidade Gregoriana (Direitos Reservados)