O casamento civil e a bênção das alianças: uma carta verdadeira e uma possível resposta

O princípio do escândalo não reside tanto na “bênção” casual de cada realidade, mas talvez mais na nossa incapacidade de dar voz, palavra e forma às pequenas ou grandes “porções de bem” que redimem e reanimam a vida de mulheres e homens

Artigo originalmente publicado no blog do autor come se nona 4 de dezembro 2019

 

Recebi esta carta, que levanta uma questão importante. Estou a reproduzi-la com algumas omissões por razões de confidencialidade. E depois tento responder-lhe, de acordo com a ciência e a consciência.

“Olá. Recorrendo a um dos seus escritos (Andrea Grillo, Tempo graziato. La liturgia come festa, Messaggero, Padova 2018, pp. 104-106 ) sobre a bênção das alianças, vimos pedir a sua opinião sobre um caso específico. Na paróquia (depois de uma formação diocesana sobre “casais feridos”), seguimos, com o pároco, um casal em particular (ela era solteira, ele divorciou-se porque a mulher o traiu com o seu atual companheiro). Em breve casarão pelo civil e pediram a bênção das alianças. O pároco, após o devido discernimento, onde avaliou a possibilidade de uma possível anulação, revelou a dúvida sobre essa possibilidade. O seu texto pareceu-nos esclarecedor: não um sacramento, mas um ato litúrgico. Da parte dos nossos párocos existe acordo sobre a sua interpretação, mas há também a preocupação com a confusão que poderia ser criada e, por isso, evitam-na com intenção pedagógica. Pedimos que nos Ilumine para nos libertar deste medo, possivelmente com referências bibliográficas. Cordialmente.”

Parece-me que aqui estamos diante de um caso clássico de contraste entre o bem civil e o bem eclesial. Para refletir com serenidade sobre este ponto, e para ajudar a tomar a decisão mais sábia e justa, parece-me que devemos considerar um elemento da questão que normalmente escapa à consideração pastoral. E não é coincidência que quem escreve tenha encontrado alguma ajuda num livro dedicado ao “tempo”. Porque a variável temporal deve ser assumida de uma nova forma pela Igreja, sem se fixar obstinadamente nos “tempos legais”, que, como é sabido, podem ser intermináveis. Explico-me melhor. É evidente que o discernimento dos sacerdotes deve dizer respeito à situação concreta. E, como é costume, começa-se por considerar a “solidez” do vínculo e, portanto, a possibilidade de chegar a uma causa para pedir o reconhecimento da sua nulidade. Com exceção dos raros casos de “processo curto” – que parecem não dizer respeito ao caso em questão – trata-se, geralmente, de processos longos com uma imprevisibilidade de tempo que conflitua profundamente com as escolhas existenciais dos sujeitos. Isto é válido tanto para o caso em que se julga haver alguma razão para a nulidade, como para o caso em que se verifica a inexistência de uma razão fundada para a mesma nulidade.

Para abençoar as alianças não se chama o “funcionário público eclesiástico”, mas aquele presbítero que permanece sempre não só sacerdote e rei, mas também profeta.

Também nesta situação, o pastor não esgotou as suas possibilidades de discernimento. Porque é precisamente neste caso que se abre o espaço para uma avaliação que, sem afetar a validade do vínculo pré-existente, reconheça as circunstâncias subjetivas particulares, e valorize uma experiência real de fracasso do vínculo. Isto, evidentemente, não pode ser apenas para situações adquiridas – ou seja, para casais que já estão na condição de ter contraído um vínculo civil e que possam ser readmitidos à comunhão eclesial. Aplica-se também àqueles que se encontram em condição de “passagem” e optaram por dar à nova união a única forma jurídica possível, ou seja, a civil. Em alguns casos, como parece ser o caso aqui apresentado, o pastor pode julgar que a união matrimonial de direito civil é “o bem possível” para o novo casal. Nesse caso, e somente nesse caso, não haveria grande dificuldade em admitir que, se é um “bem”, esse bem pode ser “abençoado”, também eclesialmente, apesar de não se tratar do sacramento do matrimónio, mas somente do matrimónio civil. De facto, não é impossível que a Igreja, em certas circunstâncias, possa reconhecer que o casamento civil, quando é o único caminho possível, represente, em si mesmo, um bem para o casal.

Para superar esta divergência, parece-me necessário valorizar a afirmação clara com que a Exortação Apostólica Amoris Laetitia supera aquele princípio do século XIX que afirma que, em matéria matrimonial, a forma jurídica-canónica objetiva tende a identificar o bem do sujeito e, portanto, também a vontade de Deus. Segundo essa mentalidade, que hoje ainda nos afeta, mesmo que de boa fé, fazer um qualquer gesto que revele “assentimento” ao matrimónio civil – por parte de um ministro da Igreja – aparece como causa de escândalo e de desorientação para o povo de Deus. A isto deve ser acrescentado um outro fator, que afeta fortemente as nossas reações: a perda do “sentido de medida”. Um casal que pede a “bênção das alianças”, se o faz com o sentido da própria limitação, com modéstia e pacatez, não pede um “sacramento clandestino”, não quer “escapar”, não quer “contornar a lei”, mas quer ver que aquele bem – aquela parte, pequena ou grande, de bem – que está prestes a viver, seja reconhecido e partilhado. Para abençoar as alianças não se chama o “funcionário público eclesiástico”, mas aquele presbítero que permanece sempre não só sacerdote e rei, mas também profeta. É preciso um profeta para reconhecer o bem onde ele se apresenta, mesmo quando não tem todos os perfis “regulares” e selos de garantia. Quando um homem e uma mulher, que carregam aos ombros uma história complexa, chegam à decisão de casar civilmente, este é um acontecimento que, sob certas condições, a Igreja pode reconhecer e com o qual pode alegrar-se. Quando se torna claro que o sacramento do matrimónio e a bênção das alianças são duas “formas litúrgicas” diferentes, nenhum pároco pode ser obrigado a abençoá-las, mas nenhum pároco deve sentir-se impedido de o consentir, quando está convencido de que o bem em jogo é maior do que a parte de fragilidade e de mal que marcou a história de um ou de ambos os cônjuges.

O princípio do escândalo não reside tanto na “bênção” casual de cada realidade, mas talvez mais na nossa incapacidade de dar voz, palavra e forma às pequenas ou grandes “porções de bem” que redimem e reanimam a vida de mulheres e homens. Os novos começos são reais. Que a Igreja não os subordine simplesmente a um regime jurídico abstruso, mas que os encontre direta e francamente, como realidades inevitáveis, não é um limite do nosso tempo. Respeitar os tempos da vida dos homens e das mulheres implica muitas vezes aceitar que a Igreja fale, antes de mais nada, na língua simples do louvor, do agradecimento e da bênção. A Igreja sabe que pode falar a linguagem eucarística quando vive no coração da sua intimidade com o Senhor. Mas pode também falar todas as línguas da bênção, do louvor e da graça quando encontra aqueles que estão, não no centro, mas ao longo do caminho, ou mesmo nas margens ou na periferia. A bênção é uma linguagem clássica da periferia eclesial. A Igreja não só pode, mas deve usá-la precisamente para reconhecer que, mesmo na ausência do bem maior, um pequeno bem possível, quando é reconhecido com benevolência, pode abrir caminhos e reconciliar corpos. Assim poderiam fazer os não raros profetas da vida futura, mal compreendidos pelos não poucos profetas de certa desgraça.