Ativismo da fragilidade: ode à beleza

No filme “A vida é Bela”, um épico manual de família, há um diálogo que nos inspira nos desafios do dia a dia: “Porque que é que os judeus e os cães não podem entrar?

No filme “A vida é Bela”, um épico manual de família, há um diálogo que nos inspira nos desafios do dia a dia:

(Cartaz numa loja onde se lê:  Proibida a entrada a judeus e a cães.)

– “Porque que é que os judeus e os cães não podem entrar?

– “Não querem lá dentro nem judeus nem cães. As pessoas fazem o que querem. Há ali uma loja de ferragens que não deixam entrar nem cavalos, nem espanhóis. Mais adiante há uma drogaria. Ontem estava lá um amigo chinês que tem um canguru e perguntei: “Podemos entrar?” Responderam “Não. Não queremos cangurus nem chineses”. Não gostam deles. O que mais te posso dizer?”

– “Nós deixamos entrar toda a gente na nossa livraria”

-“A partir de agora também vamos escrever qualquer coisa. De quem é que tu não gostas?”

– “De aranhas, e tu?”

“ Não gosto dos visigodos. A partir de amanhã escrevemos: Proibida a entrada a aranhas e visigodos. Estou farto desses visigodos.”

Este pequeno momento no filme que espelha a capacidade amorosa deste Pai em tornar tudo belo aos olhos do seu filho – a substituir o mal com bem, o medo com sentido de humor, a humilhação com a humildade – lembra-me muitas conversas e momentos…

Vivemos numa fantástica época em que as palavras “diversidade” e “inclusão” estão presentes nos diálogos políticos, sociais, morais e éticos. Estaremos mesmo a dialogar?

Falo com muitas famílias de pessoas com deficiência, sobretudo, intelectual. A nossa filha mais nova tem síndrome de down. Desde que temos a Maria Joana nos nossos braços, iniciámos um caminho de mundos paradoxais:

Por um lado, este tal mundo da inclusão onde tudo cabe e cujo universo está alinhado para o politicamente correto de que todos têm lugar. Por outro, o que com mais frequência ouvimos nas partilhas com famílias iguais à nossa e de pessoas com deficiência (sobretudo adultos) é a experiência da solidão. Sim, solidão. A solidão é sentir que não somos queridos, úteis, que não pertencemos, que estamos fora. O maior inimigo da inclusão não é a exclusão, é a solidão. A exclusão é a consequência. Não chegam políticas ou boas práticas, para combater esta solidão atroz é preciso um hábito individual de cada um de nós, quer como cidadãos, quer como Pais ou filhos de ver (não apenas olhar) as pessoas com deficiência, tocar, falar, telefonar, ouvir, estar.

Por outro lado, o mundo não quer pessoas com deficiência, cada vez é mais evidente. E nós, famílias, ao contrário do que o mundo parece julgar, experimentamos que a vida ficou mais bonita. Muito mais bonita. Os laços ficaram mais sólidos. As gargalhadas mais constantes e as lágrimas mais partilhadas. Não digo que tenha ficado mais fácil, ficou mais dura, com mais desafios. Mas, facilidade não é sinónimo de felicidade…esse é o mote da beleza.

Regressando ao filme…claro que hoje em dia, não se colocam cartazes explícitos a proibir pessoas com deficiência, pelo contrário, nos serviços públicos até temos símbolos de prioridade mas é precisamente aqui que entra a ironia da questão e o paradoxo. Se por um lado, não são colocados cartazes nas portas, por outro, quantas empresas em Portugal empregam pessoas com deficiência? Quantas escolas têm gosto e dedicação em educar um aluno com deficiência? Quantos de nós tem ou convida um amigo com deficiência para almoçar?

Perante esta realidade, questiono-me diariamente: Afinal o que é a deficiência?

Deficiência, a palavra que contém um enorme juízo de valor que nos bloqueia.

Será que deficiência é alguém que não consegue andar ou aquele que não sabe perdoar? Será que deficiente é aquele que não sabe ver ou aquele que não ajuda o amigo do lado?

A palavra deficiência tem uma ligação direta à eficiência como se esta fosse a condição para a vida mais completa. Contém uma discriminação e um juízo de valor inerente que encerra as pessoas num catálogo. O “Síndrome da Perfeição“ dos nossos dias discrimina e exclui. Vivemos agarrados a um preconceito de beleza, onde a fragilidade parece não ter tanto lugar.

Então, o que é a beleza? O que é a perfeição?

A ideia de beleza é discutida desde a Grécia antiga até hoje e tantas vezes conceitos de beleza entram em conflito. Gosto particularmente da ideia do amor pela beleza e a ideia da sua busca em qualquer circunstância ou contexto. O Viktor Frankl no livro “um homem em busca de um sentido”, onde relata a sua duríssima experiência em Auschwitz, diz uma frase de onde retiro esta ideia da beleza livre: “ Nós, que vivemos em campos de concentração, podemos recordar os homens que iam de caserna em caserna para confrontar os outros, oferecendo-lhes o último pedaço de pão. Podem ter sido poucos, mas constituem prova suficiente de que tudo pode ser  tirado a um homem, menos uma coisa: a última das liberdades humanas – a possibilidade de escolhermos a nossa atitude em quaisquer circunstâncias, de escolhermos a nossa maneira de fazer as coisas.(…)” .

Hoje, não chega falar inclusão como capítulo dos direitos e dos deveres, precisamos desta linguagem da ternura que o Roberto Benigni nos ensina. Precisamos desta liberdade de olhar para a realidade hostil e a tornar bela.

Precisamos de ser ativistas da fragilidade – de a colocar no centro das ações internas e externas. A inclusão não se impõe, não se ensina, vive-se, chora-se, erra-se, dança-se e sobretudo, assume-se que é uma oportunidade de amor para nos tornarmos humanos. É um ode à beleza. À de Deus.