O primeiro semestre como estudante de Filosofia fez-me tomar contacto com os grandes vultos da Filosofia Antiga. Através deste pequeno ciclo de três artigos, proponho-me tratar alguns aspetos das figuras centrais do pensamento grego antigo: Sócrates, Platão e Aristóteles.
Pessoalmente, foi um privilégio tomar contacto com a figura simultaneamente incontornável e misteriosa de Sócrates, um transformador moral das mentalidades dos seus concidadãos. Além disto, o facto de conhecer o seu pensamento e história, nomeadamente através da sua Apologia, de moveu-me instintivamente a estabelecer um paralelo com a figura de Jesus Cristo.
Em primeiro lugar, despertou-me interesse conhecer o método socrático, que valoriza mais do que uma transmissão unilateral de conteúdos, o do diálogo que conduz à verdade. É interessante constatar o modo como Sócrates faz uso o método científico dos “físicos”, não se revendo no seu objeto de estudo que está “reservado aos deuses” e não adianta em nada aos homens. Por outro lado, a oposição aos sofistas prende-se com a questão do seu método que é utilitarista, na medida em que apregoam os conhecimentos que possuem, cobrando pelos seus serviços, apesar de tratarem do verdadeiro objeto, isto é, o ensino da virtude e da política, tendo em vista a felicidade.
Assim, o método socrático congrega o método dos físicos e o objeto dos sofistas, sendo que aquele que questiona finge-se desconhecedor dos temas levantados. De facto, deseja, num primeiro momento (“ironia”), expor a ignorância e os preconceitos do seu interlocutor para, posteriormente (“maiêutica”), encaminhá-lo no desvelar o conhecimento verdadeiro – racional e moral -, que acreditava já estar presente no seu interior.
Em segundo lugar, despertou-me interesse o conceito de “daímon”, uma voz divina interior que podemos equiparar à voz da consciência, e que, segundo certas mediações, o punha em contacto com o divino. Esta voz, sinal de uma familiaridade com o Deus único, invisível e providente, expressava-se sobretudo diante de situações em que o filósofo era advertido para não cometer certos erros. No mesmo nível da interioridade, é pertinente notar que a expressão discutivelmente atribuída a Sócrates “conhece-te a ti mesmo” prende-se com a importância do autoexame como propulsor da “sabedoria humana”. Com efeito, a partir da revisão de vida, espera-se aperfeiçoar a conduta humana, exercitar as virtudes e a cidadania coerente, tendo em vista a felicidade.
O daímon, como centelha divina presente e atuante na interioridade humana, está também relacionado com o conceito central da “alma” e a sua imortalidade. Para Sócrates, a alma é o que de mais essencial e valioso existe no ser humano, coincide com a nossa “consciência pensante e operante” e a “personalidade intelectual e moral”. Isto representou a total superação das teorias órficas e fisiológicas que atribuíam à alma o carácter de princípio ou de expiador da culpa, e originou um novo paradigma no campo da tradição moral e intelectual. Foi a partir da valorização da alma face ao corpo que Sócrates se sentiu recetor da parte de Deus da missão de ensinar a cuidar da própria alma: “persuadir a vós (…) de que não deveis cuidar só do corpo, nem exclusivamente das riquezas, e nem de qualquer outra coisa antes e mais fortemente que da alma, de modo que ela se aperfeiçoe sempre” (in Apologia).
Em terceiro lugar, a morte de Sócrates gerou em mim uma ressonância forte ao ver como um homem pode ser fiel àquilo em que acredita até às últimas consequências. Sócrates foi acusado pelos sofistas de corromper a juventude. Independentemente de as duas acusações que lhe eram imputadas – o ateísmo e a introdução de novos deuses – serem mutuamente exclusivas, Sócrates revela-se firmemente enraizado na sua vocação filosófica e pedagógica. Com efeito, não se mostra disponível a renunciar à sua missão em troca da vida e apresenta-se confiado no daímon (voz divina interior) que, naquelas circunstâncias, não se expressa no sentido de impedir a sua postura. Além disto, Sócrates demonstra estar absolutamente confiado no que virá depois da sua morte, sabendo-o melhor do que aquilo que já passou, e abandonando-se despojadamente à providência de Deus (“Por mim, muitas vezes hei de querer morrer, se isto for verdade”, “Mas já é tempo de partir – eu para morrer –, e vós para viver. Qual de nós terá a melhor sorte, só Deus pode vê-lo com clareza.”, in Apologia).
Respondendo ao apelo instintivo de pôr em diálogo Sócrates e Cristo, como dois “mestres da humanidade” (Karl Jaspers), proponho-me encontrar paralelos na vida de Jesus no que respeita: ao método de comunicação, ao valor da interioridade e à experiência da morte.
Em primeiro lugar, o método socrático evocou-me a forma como Jesus se dirigia às multidões para ensinar, recorrendo a parábolas e a questões interpelativas. Exemplo disto é a parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37) em que, perante a pergunta que visava experimentá-lo, Jesus, em vez de dar uma resposta final, reposiciona-se na conversa. De facto, é devolvida a pergunta – “Que está escrito na Lei? Como lês? -, desejando suscitar no outro o encontro progressivo com o conhecimento verdadeiro. No decorrer da interação, o doutor da lei, deseja ir mais além perguntando «e quem é o meu próximo?». É neste contexto que surge a conhecida parábola sobre a misericórdia que culmina com a devolução da mesma pergunta “Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?”. Assim, Jesus revela uma pedagogia de caminho e de desvelamento da verdade que já habita nos nossos corações.
Em segundo lugar, tal como em Sócrates, a interioridade é apontada por Jesus como lugar onde habita e opera a eternidade. Passagens como “quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te” (Mt 6, 6) revelam a centralidade que a vida interior tem na vida de Jesus e dos seus seguidores. É nessa instância “secreta”, no “sacrário do homem” que é a consciência que se dá a relação imediata com Deus.
Por fim, é evidente a ligação entre as mortes de Sócrates e Cristo. Ambos homens justos condenados como injustos, sacrificados em nome da verdade que apregoavam, confiados que a vida verdadeira não se cinge à materialidade, mas que há um além promissor. A expressão “[A minha vida] Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente” é representativa da entrega total que ambos preconizaram e que, cada um a seu modo, ainda hoje dá frutos abundantes.