“O Existencialismo é um Humanismo”, de Sartre a Torga

O humanismo existencialista não embarca em generalizações totalizantes e finais do que é ou deixa de ser o homem. Antes, afirma que o homem existe “projetando-se e existindo fora de si”, bem como “perseguindo fins transcendentes”. É neste sentido que a "existência precede a essência".

No dia 27 de fevereiro de 1947, Torga, em Diário IV, reagia deste modo à obra publicada meses antes por Jean-Paul Sartre: 

Também eu acredito que a existência precede a essência. Que tudo começa quando o coração pulsa pela primeira vez, e tudo acaba quando ele desiste de lutar. Que todas as paisagens são cenários do nosso drama pessoal, comentários decorativos da nossa aventura íntima e profunda. E que, por isso, cada homem só se pode salvar ou perder sozinho, e que só ele é o responsável pelos seus passos, que só as suas próprias raízes são raízes, e que está nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino. Companheiro doutros homens, será belo tudo quanto de acordo com o semelhante fizer, todas as suas fraternidades necessárias e louváveis. Mas que será do tamanho e da qualidade da sua realização singular, da força da sua unidade, da posição que escolheu e da obra que realizou, que a consciência lhe perguntará dia a dia, minuto a minuto.

1.“Também eu acredito que a existência precede a essência” 

O que une a diversidade dos existencialistas é o facto de admitirem que “a existência precede a essência”, isto é, que “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define” (p. 216, O Existencialismo é um Humanismo). Isto representa uma rutura com a mundividência cristã segundo a qual o conceito do homem concebido em Deus é posteriormente realizado com a sua criação. Além disto, também os filósofos ateus do século XVIII, ao defenderem uma natureza humana, acabaram por postular uma essência prévia que depois é realizada existencialmente em cada homem.

Para o existencialismo ateu, defendido por Sartre e ilustrado por Torga, a existência primordial é transferida de Deus ou de um conceito para o ser no qual “o coração pulsa pela primeira vez” (p. 179, Diário IV), isto é, para aquele que “existe antes de poder ser definido por qualquer conceito” (p. 216, O Existencialismo é um Humanismo). Se Deus não existe, a natureza humana não é concebível.

Entender o homem como “projeto que se vive subjetivamente” (p. 217, O Existencialismo é um Humanismo) é torná-lo protagonista de uma realidade que se lança continuamente para o futuro, dramaticamente dependente da responsabilidade que tem a seu uso. Dá-se, então uma absolutização do sujeito e uma relativização dos objetos que compõe a realidade envolvente, como meros “cenários do nosso drama pessoal”, inteiramente suscetíveis à hegemonia da nossa “aventura íntima e profunda” (p. 179, Diário IV).

A responsabilidade a que alude Sarte não se reduz à mera individualidade. O homem, no mesmo ato de se escolher a si próprio, compromete-se com todos os homens. Isto acontece porque perante a fatalidade de criarmos o “homem que desejamos ser” estamos a imprimir um valor à cerca “do homem como julgamos que deve ser” (p. 219, O Existencialismo é um Humanismo). Se esta autodeterminação me conduz ao bem, ela trará necessariamente benefícios aos outros. Seguindo a terminologia de Torga, será justamente “a qualidade da sua realização pessoal” que determinará o carácter “necessário e louvável” da sua “fraternidade”, sem que esta necessite de ser procurada separadamente daquela. A fraternidade não é um bem em si mesmo, mas um efeito colateral da responsabilidade pessoal.

A fatalidade do “drama pessoal” (p. 179, Diário IV) a que Torga alude neste inciso do seu diário é indissociável da “angústia” que resulta da consciência de que a ação pessoal não implica somente o agente, mas a “humanidade inteira”. Está latente, em cada ação, a retificação de um imperativo categórico cujas formulações são sugeridas em “e se toda a gente fizesse assim?” e “terei eu seguramente o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos meus atos?”. Se é verdade que, nas palavras de Torga, “cada homem só se pode salvar ou perder sozinho”, essa salvação ou perdição comporta em si um peso de consequências globais. A angústia, então, no bloqueia a ação, mas é sua condição indispensável. Assumindo o custo da escolha de uma ação, esta “só tem valor por ter sido escolhida” (p.221-25, O Existencialismo é um Humanismo).

Excluído Deus da equação – por muito “incomodativo” que isso seja – o homem está entregue a si próprio, sem “valores ou imposições que [lhe] legitimem o comportamento”. A solidão que Torga sugere traz consigo um pragmatismo de quem olha para o futuro como único tempo “vivível”, isto é, passível de invenção, mas que ainda tem de ser construído, artesanalmente: “está nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino”. Com palavras que ficaram para a posteridade, Sartre disse o mesmo de outra maneira: “o homem está condenado a ser livre” (p. 227-228, O Existencialismo é um Humanismo). Apercebendo-se da fatalidade da sua existência, tem necessariamente de escolher, sabendo, inclusivamente, que não escolher já é escolher, à maneira de um ator lançado repentinamente para cima de um palco com a peça em andamento (ver Ortega-Gasset, O que é a Filosofia?). Destino sempre haverá, a escolha – essa – terá de recair sobre a grandeza ou a pequenez.

2. A fatalidade de escolher entre possíveis “Destinos”

Dando continuidade ao diálogo fecundo entre Sartre e Torga, analisaremos agora dois exemplos paradigmáticos do “existencialismo humanista” que a ambos caracteriza. 

De um lado, é-nos proposto por Sartre o célebre caso do seu aluno que “tinha de escolher nesse momento, entre partir para Inglaterra e alistar-se nas Forças Armadas Livres, (…) [abandonando] a sua mãe – e o ficar junto dela ajudando-a a viver”, tão frágil que estava pela traição do marido e a morte do filho mais velho (p. 230).

Este jovem debateu-se longamente com os prós e contras de ambas as opções, recorrendo a diversos sistemas deontológicos que poderiam orientar a sua decisão. Qualquer decisão poderia representar um fracasso ou um sucesso, mas “quem poderia ajudá-lo a escolher?” (p. 231). O professor Sartre não tinha dúvidas: “Ninguém”. Mesmo prescindido dos valores e agarrando-se ao instinto ou ao sentimento, faltará sempre “praticar um ato que o confirme e defina” (p. 233). Os sentimentos, para Sartre, tal como os sistemas morais, constituem-se pelos atos que se praticam. Até o extremo da alienação de delegarmos a decisão num conselheiro nos implica no sentido de decidirmos o género de conselho que iremos receber. Em suma, Sartre recomenda “você é livre, escolha, (…) invente.” (p. 235, O Existencialismo é um Humanismo). Muito pior do que escolher mal é não escolher. Como o próprio Sartre escreveu em Ser e Nada, “a questão não é o que fizeram de mim, mas o que faço com o que fizeram de mim”.

De outro lado, o conto “Destinos”, presente em “Novos Contos da Montanha” (1944), conta-nos a história de “uns amores singulares”, primaveris e virginais entre Natália – “delgada, maneirinha, branca e de olhos esverdeados” (p. 84) e um rapaz cujo nome é omitido – “desgraçado”, filho da “pobre Teodósia”, de “natureza tímida, incapaz de um ato rasgado e levado até ao fim”. 

A propósito de uma colheita de cerejas, em que o rapaz se empoleirava sobre os ramos e Natália, cá de baixo, o ia desafiando com palavras breves, olhares quentes e uma presença física que a tornou “num fruto que apetecia colher” (p. 85), começou um namoro tácito, secreto, mais consentido do que sentido.

Depois deste momento alto, é-nos apresentada a condição frustrante do nosso “rapaz atarantado e reticente” (p. 86). Ora conversando com a pobre mãe sobre o seu amor eternamente contido “entre o sonho e a realidade”, remetendo sempre para “amanhã” o momento em que lhe declararia o seu amor, ora em interações ineficazes com Natália que, “como no dia das cerejas”, “era sempre [ela] a começar”, sem que ele se atrevesse a dar “o primeiro passo”. O rapaz, por mais que sentisse na presença da amada um “contentamento sem medida”, proferia palavras mais vagas do que concretas, numa incompreensivelmente abissal distância entre o “entendimento” e a “coragem” (p. 87).

O inciso que marca a viragem daquela muda contenção de amor é paradigmático: “Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a terra.” (p. 87) Até numa pacata aldeia da montanha, o futuro é inadiável e o destino tem de ser escrito, seja pelas mãos da “grandeza” ou da “pequenez”.

Até no ato de o informar sobre o pedido de namoro de João Neca – novo pretendente à coroa -, Natália tentou espicaçar o amor daquele amante cativo no entendimento, desdenhando o Neca manifestamente (“Eu queria lá um farsola daqueles! Estou muito bem assim”). “Mas ainda desta vez o ânimo lhe faltou” (p. 88) – as palavras contradiziam o coração, obstinadamente acorrentado à inação. 

Por mais que a realidade se sucumbisse em seu favor, a sua cobardia fê-lo viver dali em diante “de alma viúva” (p. 88), e cobriu Natália, entretanto noiva, de um “negro véu de desilusão” (p. 88).

O rapaz-cujo-nome-não-chegou-a-ser-pronunciado entregou-se, mais amante do que nunca, mas calado como sempre, “à tristeza [que] se aninhava sombria e desamparada”. A sua incapacidade de se determinar retirou-lhe a identidade existencial e descartou-o de um futuro, como “projeto [eternamente adiado] de homem”. A escolha de não escolher fê-lo perder aquilo que mais amava, o sentido para a vida, qualquer sombra de humanidade.

Disse Rilke nas Cartas a um Jovem Poeta: “tu só és poeta se disseres, se eu não escrever eu morro! Tu só és músico se tu disseres: se eu não compuser, ou se eu não cantar, eu morro! Tu és só és pintor se disseres, se eu não pintar, eu morro!”. Do mesmo modo, também um amante que não decida amar (ou que decida não amar), morre, tal como um homem que escolhe não escolher – que “desiste de lutar” (p. 179, Diário IV) – deixa de ser homem.

3. O Humanismo como transcendência imanente e por realizar

O humanismo que Sartre defende difere do humanismo clássico que “toma o homem como fim e como valor supremo”. Esta abstração é perigosa porque se presta a que qualquer homem se considere “responsável pelos atos particulares de alguns homens”, o que constituiria, por um lado, uma desresponsabilização da sua ação pessoal e, por outro lado, fomentaria uma apropriação injusta e uma despersonalizada do valor de outros homens. Não cabe ao homem emitir um juízo geral sobre o valor da sua espécie (por absurdo, referem-se o cão e o cavalo como eventuais emissores), mas reconhecer que o homem – cada homem – “está sempre por fazer” (p. 267-268, O Existencialismo é um Humanismo).

De facto, o humanismo existencialista não embarca em generalizações totalizantes e finais do que é ou deixa de ser o homem. Antes, afirma que o homem existe “projetando-se e existindo fora de si”, bem como “perseguindo fins transcendentes”. Esta transcendência, ao invés de remeter para Deus como legislador externo, opera como estímulo a partir do próprio homem. É no sentido de uma constante “superação” relativamente a si próprio e de uma busca incessante de sentido e de “libertação” que o homem se “realizará precisamente como ser humano” (p. 268-269, O Existencialismo é um Humanismo).

Este mesmo humanismo existencialista está presente nas linhas do Diário de Torga. Se “só as suas próprias raízes são raízes”, mais ninguém será legislador do seu proceder. Na verdade, a transcendência que está ao seu alcance não o assalta de fora, mas brota necessariamente da raiz única e irrepetível da sua humanidade. Por outro lado, o projeto de libertação que define a sua “realização singular”, isto é, a sua salvação, é de sua exclusiva responsabilidade, já que “cada homem só se pode salvar ou perder sozinho”, estando “nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino” (p. 179, Diário IV).

Referência bibliográfica principal:

– SARTRE, Jean-Paul, e Vergílio Ferreira. O Existencialismo é um Humanismo. Trad. e notas de Vergílio Ferreira. 4.ª ed. Lisboa: Presença, 1978, pp. 207-307

– TORGA, Miguel. Diário IV. 3ª ed. Coimbra: Coimbra, 1973, p. 179- TORGA, Miguel. Novos Contos da Montanha. Coimbra: Coimbra, 1984 (12ª edição)