O Deus dos mortos

Fim. Livre finalmente. Agora que sei que Deus está morto, posso viver.

Quando abri os olhos, tudo era menos nebuloso. Apesar do que via parecer mais escuro, a nitidez era maior, como naqueles dias que se seguem ao nevoeiro e em que as nuvens ainda pairam uns metros acima, tapando qualquer raio de luz direta.

Nesse instante, com uma certeza clara e distinta, percebi que tinha acordado de uma ilusão. Todo o engano e todo erro tinham acabado. Fim. Livre finalmente. Agora que sei que Deus está morto, posso viver.

Agora tenho a certeza, sem grandes metáforas gastas nem imagens poeirentas, que o sopro de uma brisa ao final da tarde não é mais do que isso mesmo e que a tempestade que nos assombra não é castigo divino algum. Agora, posso saborear uma e outra apenas por aquilo que são.

Hoje sairei à rua e tudo será igual, mas totalmente novo, porque terei o olhar livre e não encontrarei, por detrás de cada homem, de cada esquina, de cada paralelo, um Deus escondido espreitando sorrateiramente por entre as criaturas. Não escutarei no chilrear de um pássaro o coração de Deus, como outrora fiz, pois simplesmente não estará lá.

A dor que encontrarei – essa que nenhum Senhor pôde algum dia superar, verdadeira assassina de Deus – poderá comover-me por si mesma e remexer-me as entranhas sem que nenhuma “voz interior” me remoa, por desejar não a encontrar pessoalmente. Estarei livre de tudo o que me foi incutido contra minha livre vontade e natureza, e tudo o que é profundamente humano poderá sê-lo de modo completo. A soberba pastará lado a lado com a caridade. Ganharei finalmente as forças para olhar a dor cara-a-cara e ver que ela é apenas aquilo que eu deixar que ela seja. Diante da morte, a rainha última de todas as coisas, não serei seu servo inútil, mas guerreiro audaz.

Se alguma vez houve um Deus – aquele no qual cheguei a saber que acreditava –, era apenas dos mortos, da letra morta, da palavra inerte. A vida que dava era mera expressão de alentos e os vivos que sustentava apenas o eram até falecerem. Esse Deus cuja divindade termina na nossa sepultura. Esse Deus é um Deus que vai para a sepultura como as vestes de um defunto.

Tudo isto pensei – de algum modo acreditei – durante a eternidade que percorre todo o acordar até ao sair de casa. E aí, ao abrir a porta, nesse dia nebulado, senti a brisa na cara e o Senhor à espreita. O Deus que vai para além da sepultura.

Foto: Vasco Lucas Pires SJ