“Epá, tu não estás mesmo a ver!”

Há um ver, um olhar que não coincide. “Não estamos sintonizados”, diria alguém. “Não estão na mesma página”, diria outro. “Não têm o mesmo horizonte”, diria Xavier Zubiri - ou melhor, digo eu, usando o seu conceito. 

“Epá, tu não estás mesmo a ver!”

Já todos ouvimos esta frase de êxtase quando alguém nos quer contar algo que não imaginamos, ou então, dita seca e assertivamente, como argumento em discussões “caseiras”, quando a outra pessoa nos quer provar que o que estamos a dizer não coincide com o ponto que quer esclarecer – e muito provavelmente até já o usámos. Não é, obviamente, nenhuma acusação de cegueira visual, pelo menos no seu sentido mais habitual. Todos sabemos ser a expressão da dificuldade em discutir com quem não nos percebe.

Há um ver, um olhar que não coincide. “Não estamos sintonizados”, diria alguém. “Não estão na mesma página”, diria outro. “Não têm o mesmo horizonte”, diria Xavier Zubiri – ou melhor, digo eu, usando o seu conceito.

Este filósofo espanhol, entre várias outras coisas, trabalha um conceito a que dá o nome de horizonte¹. Para ele, trata-se do modo que cada um (em cada tempo da história, em cada área do saber, em cada vida e personalidade) tem de olhar, da janela através da qual cada um se relaciona com a realidade, ou seja, com o eu e com o mundo que me afeta e do qual sou participante. É o campo de visão que nos permite ver, mas esconde tudo o que dele fica fora, isto porque ao ser formado por aquilo que nos faz ver é também delimitado por essas coisas. Exatamente porque põe limites é criado, não existe independente das coisas. Ainda que inconscientemente, torna-se o nosso modo de leitura para o modo como nos relacionamos e, a partir daí, como atuamos, olhamos e aproximamos das coisas.

Se Zubiri nos apresenta dois grandes modos de pensar e olhar a filosofia ao longo de milhares de anos de filosofia – o horizonte do movimento e o horizonte da niilidade ou da criação – também no nosso dia-a-dia e na nossa sociedade, nas pequenas e grandes coisas que a compõe somos regidos e regemos pequenos ou grandes horizontes, onde o nosso olhar nunca (e ainda bem!) é totalmente indiferente, totalmente desapegado e abarcador de tudo. Aquilo que sou, em que me vou tornando, ou seja, o modo como afeto e sou afetado pelo mundo, conscientemente ou não, forma o meu horizonte e é formado por ele.

Assim, se esse olhar para a realidade for, por inúmeras razões, radicalmente oposto ao do outro, se o meu pequeno horizonte for uma janela onde o que vejo é subjetivamente contraditório ao que o outro abarca da sua janela, até o que é objetivo se torna ponto de confronto. Por isso, torna-se fulcral encontrar pontos em comum, pontes, linguagens partilhadas – alargar para cruzar horizontes!

O horizonte de um polícia é e será sempre diferente do horizonte de uma médica, o modo como um professor olha para o mundo, só por si, poderá não se assemelhar ao de uma bailarina. Porque, por defeito (ou feitio…), cada profissão implica um modo de estar diante das coisas, da realidade; assim como uma mãe – pelo que a faz ser mãe –  terá um olhar distinto da avó – que, sendo também mãe, é afetada agora doutro modo pelo que vive. Mas graças a Deus, cada um de nós, cada vida não se pode reduzir a um conjunto determinado e imutável de características (nem de personalidade nem, muito menos, profissionais), o que nos dá a possibilidade de nos unirmos a outros que vivem a partir de outra “janela”, mas com as quais partilhamos as vistas.

Dilatemos os nossos horizontes, abramos os nossos olhos e entremos na janela do vizinho!

“Epá, estás a ver?”

 


¹ Zubiri, Xavier. «Sobre el problema de la filosofía». Em Sobre el problema de la filosofía y otros escritos. Madrid: Alianza Editorial / Fundación Xavier Zubiri, 2002