A história da doença precisa das partes omissas

A Medicina Narrativa, em particular com o auxílio do cinema, convida-nos à atenção da história toda, do que é dito e do que fica por dizer. Em suma, convida-nos à escuta enquanto atitude de atenção cuidadosa e não simples espera pelo dito. Colar as peças, intuir a história toda, respeitar a forma da história ser contada é caminho para a empatia que cura.

A prática médica pede aos profissionais de saúde uma atenção, não só ao conteúdo, mas à forma como as histórias são contadas. A Medicina Narrativa, enquanto área das humanidades médicas, utilizando as várias formas de narrativa existentes nas humanidades, ajuda os profissionais de saúde a cultivar esta atenção para lá do dito. Ora, no cinema este aspeto adquire um relevo mais significativo, uma vez que a forma se revela como própria mensagem. A atenção à forma como a história nos é dada a conhecer – os planos, a luz, os ambientes, a caracterização das personagens, o silêncio, o “por dizer”, etc. – manifesta-se reveladora da própria história.

Na vida humana, a forma como nos contamos e damos a conhecer, envia-nos para um mistério mais profundo do que a história contada.

Do mesmo modo, na vida humana, a forma como nos contamos e damos a conhecer, envia-nos para um mistério mais profundo do que a história contada. Há uma postura corporal, uma hesitação, uma pausa, uma cadência, um silêncio, umas palavras escondidas, algo por dizer, enfim… há um mundo de peças da história que podem estar a faltar. O cinema educa-nos a atenção para o todo, ajudando-nos a juntar peças omissas, mantendo-nos fiéis e atentos à história contada.

Muitas vezes, no nosso raciocínio clínico, buscamos incessantemente o porquê das coisas, a sua causalidade infinita. As narrativas cinematográficas ajudam-nos a dar a devida atenção ao “como” das histórias, pois é nesse “como as histórias são contadas” que encontramos aquilo que realmente é relevante para o doente. Por vezes, não é o problema principal aquilo que mais o incomoda. Uma simples mudança, um pequeno gesto sobre um problema menor, pode levar à cura integral de forma mais eficiente e, mais importante, empática. Isto só é possível se dermos atenção ao “como” da história.

Para exemplificar esta analogia entre a narrativa cinematográfica e a narrativa de uma pessoa com uma história de doença, proponho que pausem a leitura deste artigo e vejam a curta-metragem que se apresenta seguidamente, Love at first sight, de Michael Davies (não se assustem que são apenas 12 minutos). Indico apenas uma chave de leitura: vejam este filme com uma atenção especial àquilo que não é dito.

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Após a visualização deste filme, apercebemo-nos da riqueza das partes que nos são escondidas e da sua necessária ausência para nos contar a profundidade da história toda. A ausência manifesta-se presença. Na verdade, somos lançados para uma incessante e repetida busca das partes omissas. No caso de Arthur, essas partes remetem para o mais fundacional da sua vida – a memória. Através dos grandes planos, de rostos bem marcados pelo tempo, somos contrastados com um discurso simples, até infantil diria, de uma paixão de adolescência. A eloquência do discurso não parece conjugar com a simplicidade das atitudes. Há um enorme conjunto de partes omissas, há muito silêncio por preencher, uma memória por recuperar.

Ao longo do filme, vamos intuindo lentamente que não é a primeira vez que vemos a história e, inclusivamente, que a vamos ver muitas mais vezes. O final do filme revela-nos que a nossa perceção não estava errada. E isto acontece, não só pela arte da atenção do espectador, mas pelos sinais que o realizador nos deixa ao longo das cenas. E o maior sinal de todos encontra-se logo no início do filme, como se o realizador nos quisesse explicar, à partida, todo o filme: o pentear de cabelo com a escova dos sapatos, enquanto o olhar de Arthur percorre o quarto, como se estranho lhe fosse. Somos presenteados com o final da história em cada dia que começa, ou melhor, no caso de Arthur, em cada dia que recomeça.

Há uma delicadeza e uma paciência que não é de “menina nova” (new girl), mas de mulher adulta, vivida, casada e amada – de uma profunda cuidadora

Somos sugestionados de que há algo por contar, provavelmente um passado esquecido, não só obviamente pela idade das personagens e pelo contexto da história desenrolada num lar de idosos, mas pela força expressiva do rosto das personagens. Por um lado, somos confrontados com um rosto de Arthur, para quem tudo é sempre novo, até a própria mulher que, para ele, será sempre a “new girl”. Por outro lado, opõe-se o rosto da sua mulher, Ruth, constantemente de olhos preenchidos pelas lágrimas de quem se lembra, aos quais se junta um sorriso de quem reencontra aquele que ama. Há uma delicadeza e uma paciência que não é de “menina nova” (new girl), mas de mulher adulta, vivida, casada e amada – de uma profunda cuidadora. Uma delicadeza adulta que se densifica no permitir-se viver diariamente um romance adolescente, onde todos os clichés são bem-vindos (a vergonha do primeiro “olá”; o passeio sobre as viagens de sonho; uma dança apaixonada; as nuvens que se vestem de formas; a chuva inesperada), na dúvida se o dia seguinte será igual.

Para além disso, outro aspeto importante nas histórias pessoais é o que cada pessoa diz de si mesmo. Por um lado, Arthur diz de si simplesmente o seu nome; Ruth apresenta-o como “my best friend”. Mas encontramos a verdadeira revelação de quem era o marido de Ruth, em resposta à pergunta que Arthur lhe coloca, no silêncio prolongado que antecede a resposta. Um silêncio revelador de intimidade e cumplicidade, mas também de saudade por aquele que ainda vive.

Por fim, não menos importante para nos revelar a história toda, temos duas personagens que aparecem em segundo plano – os cuidadores – personagens tão irrelevantes quanto interessantes. Na verdade, o crescimento da personagem de Mark dá-nos a certeza de que a história não é simplesmente um ato repetido, e o seu confronto com Arthur numa das primeiras cenas permite a sua própria evolução. Um jovem rapaz que cresce e aprende, confrontado com um velho homem que todos os dias nasce rapaz. E um crescimento que é reconhecido pelo olhar manso e pelo constante acompanhamento da outra cuidadora (de quem não sabemos o nome). A abertura para a aprendizagem, só possível com a sã memória, torna-se espaço para o encontro, que atinge o seu clímax no olhar final da cuidadora sobre Mark, enquanto este percorre o mesmo corredor, com o mesmo carrinho, mas com a roda destravada e uma alegria renovada.

A escuta revela-se atitude, mais do que um mero ato de auscultação do dito

Concluindo, tal como no cinema, quando temos alguém diante de nós disposto a contar-nos a sua história, exige-se de nós uma atenção ao que não é expresso, àquilo que é omisso. A arte da escuta franca está assente, sobretudo, naquilo que não é escutado. A escuta revela-se atitude, mais do que um mero ato de auscultação do dito, na confiança de que a ausência pode ser lugar de manifestação de uma presença. A Medicina Narrativa, em particular com o auxílio do cinema, convida-nos à atenção da história toda, do que é dito e do que fica por dizer. Em suma, convida-nos à escuta enquanto atitude de atenção cuidadosa e não simples espera pelo dito. Colar as peças, intuir a história toda, respeitar a forma da história ser contada é caminho para a empatia que cura.