Os clássicos, dizia um jesuíta em Braga, são os que têm classe. Dito por outras palavras, há coisas que, sendo velhas e boas, não são boas por serem velhas, mas são velhas porque são boas. Este é um princípio que, creio, regra geral, se sustém no âmbito da Literatura. Se a Odisseia não fosse boa, teria morrido nova, e nunca chegaria a velha.
Começo com este pequeno aforisma bracarense porque, de facto, não deixa de ser surpreendente que um texto com quase três mil anos, escrito numa língua que nos é totalmente incompreensível, cuja poesia, métrica e beleza fonética são impossíveis de conservar numa tradução fluente… continue a valer a pena ler. «As armas e os barões assinalados, / que da Ocidental Praia Lusitana, / por mares nunca dantes navegados…», pelo menos, ainda pode soar bem ao ouvido; já «ἄνδρα μοι ἔννεπε, μοῦσα, πολύτροπον», por muito tradicionalista que se queira ser, não nos diz a mesma coisa.
Assim, ao começar a escrever este artigo mal-amanhado, a pergunta que trago à consideração do leitor é, muito simplesmente, porque é que ainda há-de valer a pena ler a Odisseia e outras dessas boas antiguidades. Ter o livro ainda vá que não vá – até fica bem na prateleira; mas… lê-lo? Porquê?
No seu livro A Experiência de Ler, Clive Staples Lewis propõe uma definição de mito a que podemos estar menos habituados. Segundo o autor, um mito é uma história, qualquer história, que seja extraliterária. O que isto pretende dizer é que um mito, do ponto de vista literário, é qualquer história cuja beleza não esteja dependente da forma como foi escrita. Lewis dá o exemplo do mito de Orfeu: se houvesse uma forma de transmitir a história que não dependesse de palavras, seria uma boa história ainda assim – a boa poesia com que Virgílio a pintou é “acidental”. O primeiro motivo para ler a Odisseia, então, é a beleza intrínseca à história: a história de um homem que deseja voltar a casa, ao regaço da sua esposa e ao descanso do seu lar; a história de um homem que combateu por dez anos as forças humanas que o impediam de retornar, e que, vencidas essas forças, por mais dez anos pelejou forças divinas. A Odisseia, escrita há cerca de dois mil e oitocentos anos, mas cujos eventos remontam a tempos imemoriais, é a narração onde se conta a história de todo o homem, que, mesmo nunca tendo deixado a casa dos pais, ainda lá não retornou.
É claro que é uma pena não podermos usufruir da boa poesia com que Homero escreveu este Épico! Tal como é uma pena não podermos ler Beowulf no idioma original, ou a Edda, ou o Gilgamesh. Mais pena ainda, na minha modesta opinião, é não podermos ler o Evangelho ou o Cântico dos Cânticos nos originais. Mas o paralelismo é óbvio: mais vale ler a tradução do que não ler coisa nenhuma. É claro que a riqueza do original (seja pelo tesouro guardado em cada palavra, seja pela fluidez melódica do texto) muito dificilmente se conserva na tradução – para esse propósito, aconselho o leitor a ler poesia medieval portuguesa –; mas ninguém deixa de ler O Bom Samaritano por não o poder fazer em grego antigo. O texto evangélico, nesse sentido, é um verdadeiro mito: uma história bela independentemente da sua forma linguística.
«Porque não posso ficar só pelo resumo»? Ora, precisamente pelo mesmo motivo que não posso ficar só pelas homilias dos sacerdotes: há que ir directo ao essencial. Um outro apoftegma do mesmo sacerdote com quem tive a sorte de conviver em Braga é que «os grandes vão directos à carne-de-barrosã». O que é que isto significa? Significa que de livros pequenos está o mundo cheio, mas “Odisseias” há poucas. Dizia o nosso amigo Schopenhauer que a primeira regra para ler livros bons é… não ler os maus – porque o tempo é curto! A segunda regra, atrevo-me eu a dizer, é ler os bons. E isso significa, mais cedo ou mais tarde, ler a Odisseia.
É claro que o leitor poderia responder: «Se pode ser mais cedo ou mais tarde, então será mais tarde». Com a sua liberdade não poderei, nem quero, interferir. Ainda assim, tenho vindo a desenvolver a opinião de que, enquanto não nos atirarmos àquilo que na vida vale realmente a pena – e a Odisseia é uma dessas coisas – não chegamos ainda a viver.
Está aí – na Amazon, na Fnac, na Centésima Página… – um livro, grosso e antigo, com um nome batido e que já não nos diz muito. Abri-lo, no entanto, é uma acção que o leitor faz por sua própria conta e risco. Homero, se o deixarmos, levar-nos-á por uma longa viagem: derrotaremos a grande Tróia emuralhada, conheceremos a divina Palas Atena, fugiremos da bela Calipso e da perigosa Circe, derrotaremos ciclopes e escaparemos ao canto de sereias… Quer queiramos, quer não, nunca retornaremos desta viagem. Foi, pelo menos, o que aconteceu ao grande Ulisses, o homem «de muitas andanças»: voltou ele a Ítaca? Sim. Mas foi realmente ele quem voltou? Como a sua viagem, o livro, esse, acaba: lê-se, aliás, em relativamente pouco tempo. Mas a vida, como bem sabemos, continua; e eu arrisco-me a dizer que nós, por muito cuidado que tenhamos, corremos o risco de, voltando, não sermos os mesmos – tal como Abrão volta Abraão, Bilbo Baggins descobre o Took dentro de si e Telémaco atinge a maturidade. O poder da Arte – seja de hoje ou antiga e traduzida – é esse mesmo. A viagem de Ulisses mudou-o para sempre. É essa, creio, a experiência de ler.
Foto: Abyan Athif, Unsplash