3. Escuta

O que se pede e espera de quem quer ser jesuíta?

 

Não é fácil definir nem dizer o que se espera de um Jesuíta. Porque há muitos e variados jesuítas, desde os mais divertidos aos mais reservados, dos animadores de adolescentes aos estudiosos de biblioteca, dos mais novos em t-shirt e calças de ganga aos mais idosos ainda em batina… ou seja, podem encontrar-se jesuítas para todos os gostos! No entanto, há alguns traços que são comuns a todos e que se vão evidenciando ao longo dos anos de formação e da progressiva integração no corpo apostólico que é a Companhia de Jesus. Eis 7 traços essenciais para quem queira entrar nesta aventura.

Um Amor Pessoal a Jesus Cristo

Foi com a invulgar experiência de Deus de Inácio de Loyola que tudo teve início. Inácio começou por ser cavaleiro de corte, encantado por damas e dado a façanhas, e com uma fé do tipo “ideal cavalheiresco”. Mas o ferimento na batalha de Pamplona viria a iniciar nele um caminho de “descentramento”, de ir percebendo, “como criança levada pela mão do Pai”, que mais importante que fazer coisas por Deus, era saber-se amado por Ele. E que esse amor incluía o convite de Jesus a segui-l’O e a trabalhar com Ele pelo Reino. Esta foi a experiência que deu origem ao livrinho dos “Exercícios Espirituais”.

São precisamente os Exercícios Espirituais que ainda hoje “moldam” o jesuíta: do descobrir-se amado por Deus, não só intelectualmente mas sobretudo de uma forma “experiencial”, brota o desejo de querer anunciar e fazer presente no mundo esse amor de Deus por toda a humanidade. E quanto mais o jesuíta se dá e se empenha, mais encontra Deus agindo no mundo e no coração dos homens. E assim a fé se torna “amor pessoal” a Jesus, para lá de qualquer humanismo, ideologia ou ética de vida.

Ser um homem de contemplação e acção

Junto ao rio Cardoner, em Manresa (perto de Barcelona), Inácio viu-se iluminado por um “entendimento novo” das coisas de Deus e do mundo. Percebeu que Deus não se limitava às igrejas ou aos “momentos sacros”, nem aos clérigos ou às “pessoas puras”, mas que está presente em todas as realidades. Percebeu igualmente que, longe da visão estática aristotélica, Deus é dinamismo, amor presente e operativo no mundo. Foi o desejo de servir Deus nesta presença e neste “operar” que fez de Inácio um “contemplativo na acção”, capaz de “encontrar Deus em todas as coisas” e de “ler todas as coisas em Deus”.

Não há, pois, pessoa, situação ou lugar que fique fora da alçada de Deus. Nem há resposta à priori sobre o que é melhor fazer ou como melhor agir. Da familiaridade do jesuíta com o Senhor surge o discernimento, a capacidade de ir percebendo, de entre as várias possibilidades de bem, qual a melhor (a que Deus quer!). O discernimento é a “sabedoria” que nasce da leitura dos movimentos interiores de Deus no coração, da atenção à “consolação” e à “desolação”, ao que dá paz e alegria profundas ou ao que pelo contrário perturba e inquieta.

Viver em comunidade como “amigos no Senhor”

Movido pelo desejo ardente de servir Deus, a sua Igreja e o mundo, Inácio não descansou enquanto não encontrou companheiros que partilhassem do seu sonho. E depois de uma primeira tentativa falhada, esse encontro veio a dar-se na sua fase de estudos em Paris, com homens como o intrépido Francisco Xavier e o pacífico Pedro Fabro, ou ainda o português Simão Rodrigues. Estavam assim reunidos os dez “primeiros companheiros”, unidos por uma forte amizade e tendo Jesus por referente maior. Nascia a Companhia de Jesus.

Quase cinco séculos depois, os jesuítas continuam a definir-se como “amigos no Senhor”. Porque embora o chamamento de Jesus seja sempre pessoal, trata-se também de uma vocação a um corpo apostólico e vivido numa comunidade concreta. A comunidade é pois fundamental na vocação jesuíta, pois nela somos chamados a partilhar o trabalho e a vida em comum, o descanso e a oração. Num mundo de relações progressivamente mais frágeis e individualistas, esta união feita de qualidades, feitios e até nacionalidades diferentes não acontece “automaticamente”. No entanto, ela pode e quer ser testemunho da comunhão sonhada e tantas vezes ausente, com Deus e entre os homens.

Com um profundo sentido de união e fidelidade à Igreja

Talvez a Igreja nunca tivesse decaído tanto como no tempo dos “primeiros companheiros”. Por isso não surpreende que seja o tempo dos movimentos reformistas de cisão, desde Lutero a Calvino. No entanto, Inácio viu claramente que essa era a tentação maior, a da separação. A Igreja, mesmo com os seus enormes problemas e defeitos, continuava a ser a Igreja fundada por Jesus, com a missão de continuar a Sua presença no mundo. Apoiá-la e querer-lhe bem desde dentro, percebeu ele, era a única forma de promover e colaborar com a mudança.

Hoje a tentação da divisão continua presente no mundo, ao ver-se as muitas falhas da Igreja. Mas se a Igreja é “pecadora” (porque constituída por homens e mulheres que o são), ela também é “santa”, habitada pelo Espírito que continuamente a chama à conversão, animando tantas coisas boas que também tem e faz. Com as suas forças e as suas fragilidades, a Companhia de Jesus pertence a esta mesma dinâmica. Os jesuítas são actualmente a ordem religiosa com mais membros, estando presentes em cerca de 140 países e assumindo na Igreja instituições, cargos e missões muito variadas.

Enviados, disponíveis e bem instruídos

Perante os novos desafios de então (era o período das Descobertas e da Reforma), Inácio intuiu que era necessária uma disponibilidade especial por parte dos jesuítas. Disponibilidade não só dentro da Companhia, na capacidade de cada jesuíta acolher e se empenhar na missão que lhe fosse confiada. Mas disponibilidade também de toda a Companhia em relação ao Papa, abertura ao que lhe parecesse ser o maior bem na missão global da Igreja. Por isso o grupo inicial foi a Roma oferecer-se a Paulo III, e o quarto voto especial de “obediência circa missiones” (relativo a missões) ficou consignado nas Constituições. Para um jesuíta, a obediência torna-se assim “princípio de liberdade”, de quem sente em si o desejo e a vontade de servir o mundo, e se coloca à disposição de quem tem a visão global e discerne em cada momento a missão. Porque em última instância a missão não é o jesuíta que se dá a si próprio (ninguém é “salvador do mundo”!), mas é recebida do próprio Jesus, através da Igreja e dos legítimos superiores. O impulso na Companhia para a dedicação aos estudos tem uma origem curiosa: quase logo após a sua conversão, Inácio viu-se procurado por muitos para “conversas espirituais”.

Mas a Inquisição determinou-lhe que devia abster-se de abordar certos campos, enquanto não os tivesse estudado. E este começo acidentado deu a entender a Inácio o quão importante era o uso de todos os instrumentos para tirar mais frutos para o Reino, sem que isso significasse confiar menos em Deus.

Por esta razão o actual percurso de formação na Companhia de Jesus continua a ser longo e variado, demorando normalmente dez anos até à ordenação, no caso dos sacerdotes, e quinze até aos últimos votos. Em muitos casos o estudo não é só teológico, pois há jesuítas a trabalhar nas mais variadas áreas do saber. Daqui resulta o conhecimento e a credibilidade para podemos ser “voz autorizada” da presença da Igreja no mundo, numa lógica de “conhecer mais para servir melhor”.

Com uma prioridade pelos mais necessitados

Com o ímpeto próprio de todas as conversões, Inácio fez-se inicialmente pobre, deixando crescer unhas e cabelos. Também os primeiros jesuítas conheceram de perto a escassez de meios, bem como a generosidade de quem a tentava minorar. Estes inícios despertaram neles a preocupação pelos mais necessitados, concretizada em obras como “a casa de Santa Marta” em Roma (para retirar mulheres da prostituição) ou os colégios de ensino gratuito que foram criados em muitos países. Mesmo a presença de jesuítas na corte e a educação das classes privilegiadas pretendia formar para esta consciência, tentando assim gerar um “efeito multiplicador”.

Hoje este trabalho cresceu, estando presente em obras como as escolas “Fé e Alegria” (educação popular na América Latina, que abrange mais de um milhão de crianças) e o Serviço Jesuíta aos Refugiados (os “novos pobres” do nosso tempo). Foi-se tornando evidente que, num mundo atravessado pelas desigualdades e com um terço de pessoas a viver em “pobreza extrema”, o serviço da fé não pode estar desligado da promoção da justiça. Esses são os sinais claros de que muito há ainda a fazer e a colaborar com Deus, para que “o mundo se torne Reino”.

Em busca do MAGIS

Desde o início que o lema da Companhia de Jesus, presente em muitas capas de livros e em muitas fachadas de Igrejas, foi o latino A.M.D.G. – Ad Maiorem Dei Gloriam (“Para maior glória de Deus”). Foi este desejo de mais, de chegar mais longe, a mais pessoas e a mais culturas, que impulsionou o crescimento da Companhia nos primeiros anos. Francisco Xavier partia para Oriente e morria às portas da China. Outros jesuítas o seguiriam, entrando na corte imperial através dos seus conhecimentos de matemática. Na Índia foi a adesão à língua e ao ascetismo que permitiu a relação com os Brâmanes. No interior do Brasil os jesuítas sucumbiam após poucos anos, vencidos pelas doenças mas desejosos de “ganhar almas para Deus”.

A “glória de Deus”, como escrevia um autor dos primeiros séculos, é que a humanidade tenha a vida plena, “em abundância”. É este dinamismo desinstalador que Deus quis conceder a Inácio e aos primeiros companheiros, que hoje continua a marcar o modo de proceder dos jesuítas e a espiritualidade inaciana, chamando-nos às “fronteiras” geográficas, culturais e do saber. Nem sempre acertando, mas tentando manter essa intenção e desejo no horizonte.