4. Pergunta
Tenho vocação?
A pergunta sobre a vocação costuma assustar e até incomodar não poucas pessoas. Na linguagem corrente é habitual achar-se que só uns poucos “têm vocação”, poucos são os “eleitos” por Deus para uma vida consagrada a Ele de uma forma radical. E forma de vida não só radical como muitas vezes vista como uma limitação, ao ler-se a consagração religiosa pela negativa: não se pode casar (o voto de castidade), nem desfrutar dos bens (o voto de pobreza), nem fazer o que se quer (a obediência).
No entanto, a clarificação desta questão começa pela referência ao facto de que todos temos “vocação”. Pois vocação vem do latim vocare (chamar), e cada um de nós é “chamado” por Deus a ter uma vida realizada, “em abundância”. Alguns como consagrados, é certo. Mas muitos outros como solteiros ou casados, como pais e avós, como profissionais empenhados naquilo em que trabalham, como membros de uma família, de um grupo concreto, ou de uma comunidade social e eclesial. É neste sentido que todos temos vocação, já que todos somos convidados a viver uma vida plena, onde quer que ela se realize.
Falar da Vocação
Falar de “vocação” significa assim falar de busca e de procura, de tentar seguir e encontrar-se nos caminhos que levam a uma vida maior. No ser humano, a “vida plena” coincide, por paradoxal que pareça, com a “vida plena” das outras pessoas à sua volta: “o segredo da felicidade”, dizia a fada num famoso conto infantil, “é fazeres felizes as pessoas à tua volta!”. Esta é no fundo a experiência que todos temos, do “quanto mais (te) dás, mais rico ficas” (Madre Teresa de Calcutá), constatando a verdade do que Jesus já dizia há 2 mil anos: “Que o maior de entre vós seja aquele que serve. E felizes sereis se o puserdes em prática!” Todos andamos a tentá-lo por muitas vias, quando a “fórmula da felicidade” acaba por ser bastante simples!
A vocação não é assim um privilégio ou uma característica só de alguns, mas interrogação de vida a ser respondida por todos. Interrogação que passa pela questão “Senhor, onde queres que eu Te sirva?”, que é outra forma de perguntar “Onde queres, Senhor, que eu ponha em acção a minha capacidade de amar, de forma a dar mais fruto, a transformar mais o mundo?”. Interrogação que envolve um discernimento às vezes prolongado, já que poucas vezes a resposta é logo evidente.
Uma entre várias possibilidades
O discernimento da vocação passa, em primeiro lugar, por um processo de “escuta” do que Deus vai propondo a cada um. Não há receitas à priori, nem fórmulas infalíveis para chegar à resposta. Não há uma “lista de requisitos” a cumprir, como se Deus só contasse com os super-dotados (dizia um jesuíta que “Deus não chama só os melhores; mas a todos os que respondem à chamada, torna-os melhores!”). A vocação não passa também pelo “sacrifício”, como se Deus só se alegrasse com o mais custoso. Nem pode ser fuga ou solução alternativa para algum tipo de frustração.
Discernir a vocação coloca-se, assim, sempre entre duas (ou mais) possibilidades, que em si mesmas são boas. Ser padre ou consagrado não é melhor do que ser casado ou solteiro. Como ser médico não é melhor do que ser engenheiro ou artista. E que a pessoa escolha uma destas possibilidades, não significa que viesse a ser infeliz na outra. A vocação é, escreve outro jesuíta, um “encontro de duas liberdades”: convite de Deus a viver a vida como missão, numa forma concreta que é a que dá mais “frutos de Reino”; e reconhecimento e aceitação por parte da pessoa, que assim se encontra e se realiza nesse projecto concreto de “bem maior”.
Confiar em Deus
Se o processo de discernimento é “escuta”, então torna-se essencial a confiança n’Aquele a quem escutamos, Deus e a sua vontade. Falar na “vontade de Deus” traz sempre o perigo de vê-la como predestinação ou imposição, a ser aceite com resignação ou por receio. Mas isso significaria imaginar Deus como um “tirano”, imagem afinal muito distante da do “Pai próximo” a que Jesus se referia constantemente. Um Deus-Pai que nos quer dar “a vida em abundância”, com ânimo e alegria interior (por isso a palavra “entusiasmo” significa, na sua origem etimológica, “estar habitado por Deus”).
Também a fé, no sentido mais original hebraico, não é um conjunto de crenças ou de conhecimentos, mas é confiança, confiança na promessa de Deus. Deus não promete que a vida será sempre fácil, mas que sempre nos acompanha e anima, nas alegrias e nas dificuldades. Visto desta forma, o que se opõe à fé não é o ateísmo, mas o medo, o receio do que nos pudesse acontecer se Deus nos deixasse sós. Mas “Deus é mais íntimo do que o nosso próprio íntimo” (Santo Agostinho), e foi essa confiança que permitiu a São Paulo escrever que “nada nos separará do Amor de Deus”.
Crescer em Liberdade
Tendo por base a confiança em Deus, o discernimento deve fazer-se com “liberdade interior”, pois só assim se pode estar realmente aberto às várias opções. O medo, como vimos, pode ser causa de falta de liberdade. Ou causa de falta de confiança em nós próprios (ou melhor, no facto de não acreditarmos que “se Deus chama, então Deus dá a graça para o que chama”). Ou mesmo causa de receio, no caso da consagração, de uma vida que se “perde” inutilmente, na qual se renuncia a coisas que em si mesmo são boas (uma família, uma carreira, um certo nível de conforto material). Mas, como é evidente, qualquer opção deve ser sempre tomada pela positiva e não centrada no que se fica a perder (p.e. quando alguém casa, não fica a pensar em todas as outras pessoas com quem deixa de poder casar).
Por outro lado, no caso do discernimento para a vida consagrada, acontece por vezes haver pessoas que estão tão “encantadas” com a possibilidade da entrega radical a Deus que, nesse caso, o “crescer em liberdade” pede que se encare com seriedade também a hipótese de vida laical. Inácio de Loiola ilustrava esta “condição inicial de liberdade” com a metáfora do fiel da balança, que deve estar exactamente a meio das duas opções.
Reconhecer os sinais
O processo de discernimento passa agora por aprender a reconhecer a “voz de Deus” dentro de nós. Tal não significa “escutar vozes” (como alguém brincava uma vez, se tal acontece então provavelmente essa pessoa não deve falar com um padre mas com um psiquiatra 🙂 !), mas sim crescer no conhecimento dos “sinais de Deus” dentro de si. A estes sinais chamam-se “consolação” e “desolação”: a consolação traduz-se habitualmente por alegria e paz interiores (mesmo se implica consequências difíceis), e aponta assim o caminho a seguir, que deixa a pessoa “encontrada” e pacificada. A desolação, pelo contrário, costuma manifestar-se como inquietação e falta de paz consigo mesmo, e é sinal de que essa opção não é a melhor.
Foi através da sua própria experiência que Inácio chegou a reconhecer estes sinais de Deus em si: convalescente em Loiola e pensando nas duas possibilidades de futuro (entregar-se a Deus ou à vida de nobreza), Inácio acabava por se sentir pacificado e alegre com a primeira, e vazio e inquieto com a segunda. A partir desta experiência escreveria umas pequenas regras para “discernimento dos espíritos” (interiores), que são parte integrante dos Exercícios Espirituais.
Confrontar com alguém
Tal como explicado até aqui, o processo de discernimento não se aplica só às grandes opções de vida, mas faz sentido mesmo nas pequenas decisões e momentos da vida. Viver em “atitude de discernimento” é assim uma “arte” na qual todo o cristão pode e deve crescer, pois é ela que vai permitindo estar atento aos constantes desafios e “toques” de Deus através da realidade.
No entanto, é verdade que é especialmente nos momentos e períodos de decisão que esta “arte” deve ser exercida e exercitada. A isso ajuda o “exame de consciência” diário, a oração frequente, a prática dos Exercícios Espirituais. De grande ajuda costuma ser também o “acompanhamento espiritual”, possibilidade de ir contrastando, com alguém mais “experiente nas coisas de Deus”, os movimentos e inquietações interiores. O acompanhante não é alguém que toma as decisões “em vez de”, nem um simples “amigo próximo”, mas alguém que ajuda não só a libertar dos medos e preconceitos infundados, como a (re)conhecer e aprofundar a passagem da “presença de Deus” na vida da pessoa.
Uma oração que pode ajudar
Na sua sabedoria milenar, o povo português tem um ditado que diz que um “santo triste é um triste santo!”. A alegria profunda é por isso o maior sinal de se ter encontrado a “pérola no campo”, mesmo se a opção escolhida traz também as suas inevitáveis dificuldades. O fundamental não é assim escolher a vida consagrada ou a vida laical, mas o encontrar Deus e deixar-se guiar pelos seus caminhos. Por isso o Padre Arrupe escreveu o seguinte texto, que tem alimentado a busca de muitos:
Não há nada mais prático do que encontrar a Deus;
do que amá-Lo de um modo absoluto, até ao fim.
Aquilo por que estejas enamorado
e arrebate a tua imaginação, afectará tudo.
Determinará o que te há-de fazer levantar de manhã
e o que farás dos teus finais de tarde;
como passarás os fins de semana,
o que irás ler e quem deverás conhecer;
o que te partirá o coração e o que te encherá
de espanto, alegria e gratidão.
Enamora-te, permanece enamorado,
e isso decidirá o resto!
Padre Arrupe sj