O mar que invade a terra adormecida

É um poema de Rui Cinatti que dá o mote à oração desta semana. O P. Hugo Gonçalves desafia-nos a deixarmos Deus (o mar) invadir a nossa terra sequiosa ou rochosa (o nosso coração) para a transformar e tornar mais fecunda.

Mar! levanta-te

Com tuas hostes de ondas e invade

A terra adormecida.

Quebra os rochedos da alma e semeia

A verdura salgada,

Imperecível.

 

Rui Cinatti, Nós não somos deste mundo

 

O mar

O mar, na maior parte dos casos, acompanha os nossos tempos de férias, servindo de pano de fundo a momentos de convívio, descanso, leitura e, também, oração. Na sua imensidão, profundidade e mistério é muitas vezes usado como imagem de Deus. Convite a adentrarmo-nos nele, a vencermos o medo do desconhecido, a mergulharmos cada vez mais profundamente, o mar é, simultaneamente, paz e frémito, estabilidade e movimento, brandura e força, surpresa e susto.

 

A terra adormecida

O que pode ser esta terra adormecida? A “terra árida, sequiosa, sem água” de que nos fala o autor do salmo 63 ao referir-se à sua alma? A terra pisada e endurecida da beira do caminho, a que Jesus se refere na sua parábola do semeador? É uma imagem muito rica para falar do nosso coração, por vezes seco, indigente, desajeitado, distraído, ferido, fechado, mantido à superfície, protegido por muralhas, represas e sistemas de descarga que nós, ilusoriamente, julgamos controlar.

A terra adormecida é o lugar do silêncio desabitado, não desperto para uma presença. Do ruído que cala a Palavra. Da dispersão que desfoca o olhar e baralha as escolhas.

A terra adormecida é o leito da figueira que não dá frutos, da vida que não se eleva do chão, da pressa que não se detém para ajudar o homem caído à beira do caminho ou a contemplar a paisagem.

Tanto como a terra adormecida precisa de ser inundada pelo mar, assim o mar deseja a terra onde as suas ondas se possam espraiar. Quanto mais o coração humano está sedento de Deus, tanto mais Deus deseja invadi-lo com o seu amor.

Os rochedos da alma

Já todos vimos inúmeras vezes como mesmo as ondas mais poderosas se desfazem quando embatem na dura rocha. Às vezes estamos também nós tão endurecidos que nos tornamos pedra dura, esclerosados pelo medo de arriscar, incapazes de acolher Deus, o Seu Amor e os Seus projectos para nós com abertura. Ou então cristalizamos o nosso processo espiritual num patamar de conforto e não investimos para ir mais longe na oração, na vida da comunidade ou no serviço. Outras vezes, também, amuralhamo-nos diante de algumas pessoas com quem temos relações desafiantes, questões mal resolvidas, ou situações de conflito. Nem sempre nos lembramos que os cercos protegem, mas também isolam. Deus disse a Ezequiel que havia de substituir o nosso coração de pedra por um de carne. Um coração capaz de sentir e de deixar-se sentir.

 

Semeia a verdura salgada imperecível

Este verso lembra os verdes prados e as pastagens repousantes de que nos fala o salmo 23 e, ao mesmo tempo, a imensidão do mar aberto. Deus, quando inunda a nossa vida, alarga-lhe os horizontes, faz dela pastagem, taça transbordante… Envolve tudo com o sal purificador do seu perdão, para que não se degrade aquilo que é destinado a ser imperecível. E tudo toca com a sua eternidade. Nós não somos deste mundo. Só falta vivermos como quem nisso acredita.

 

Para ir rezando ao sabor dos dias

O mar | Tomo consciência da presença e do amor de Deus por mim nas coisas e nas pessoas à minha volta e deixo-me inundar por essa presença

A terra adormecida | O que tem andado, ou sempre esteve, adormecido em mim?

Os rochedos da alma | Em que situações ou momentos as ondas embateram contra a couraça fechada de que me revesti?

Semeia a verdura salgada imperecível | O que é que tenho de deixar que Deus inunde com a sua paz, com a sua bondade, com o sal do seu perdão, com as suas ondas capazes de abrir caminho por entre a rocha dura?

 

Proposta de P. Hugo Gonçalves