A história da Filosofia está cheia de deuses. Diria, talvez temerariamente, que todos os pensadores – das humanidades, das ciências, das artes – cuja memória nos chegou alguma coisa disseram sobre o transcendente, sobre Deus ou sobre os deuses. Contudo, sempre que falamos de Deus, estamos sujeitos a confusões, reduções e ambiguidades. Falar bem sobre Deus não é fácil; afinal de contas, quem é Deus? O que O caracteriza, na sua essência? É um ou são vários? Tem extensão? Cabem aqui muitas perguntas que a nossa linguagem não consegue bem formular e a que é necessário atender para bem da nossa precisão e, mais ainda, da nossa boa compreensão.
Imaginemos que tenho duas maçãs. Observo que têm um conjunto de características iguais, segundo as quais as posso descrever e comparar: a cor, o tamanho, o cheiro… Posso até dizer que são do mesmo género. Contudo, poderei também observar que estas duas maçãs, em concreto, têm singularidades: uma pode ter uma forma mais achatada, a outra um defeito na casca; e posso até considerá-las apenas com base nestas diferenças, destacando a unicidade duma em relação à outra. A opção intermédia consiste em olhar para ambas e verificar que, à primeira vista, partilham um conjunto de traços e características; contudo, consigo também observar diferenças que me permitem distinguir um fruto do outro.
A partir deste exemplo conseguimos perceber uma importante distinção de linguagem. A primeira observação enfatiza a similaridade das maçãs; os termos que as descrevem são aplicados da mesma forma – é uma linguagem unívoca. A segunda forma nota as diferenças e permite assim separar cada maçã segundo os seus termos específicos; cada maçã é única e irrepetível, não se pode confundir com outra – esta é a linguagem equívoca. A consideração final atende às características comuns sem descurar as diferenças particulares; os termos usados são aplicados de forma a preservar o igual e o diferente – é uma linguagem análoga.
Porque é que estas distinções interessam? Quando saímos do mundo sensível, o conteúdo dos nossos juízos e teorias está sujeito à capacidade finita de nos exprimirmos. Ao falarmos do que nos transcende – das realidades além do físico, meta-físicas – estamos sempre sujeitos aos seus limites e potencialidades da expressão humana. A linguagem técnica artilha-nos de termos precisos, mas essas formas não têm um paralelo metafísico; não é possível pesar a essência de uma maçã ou medir a animalidade de um cavalo!
Quando falamos de Deus – o mais metafísico de todos! – este abismo atinge a sua máxima profundidade.
É possível falar de Deus equivocamente, colocando-o longe, além de todo o acesso humano. Deus é tão diferente de nós, tão sublime, e eu sou tão poucochinho… O que é que há de semelhante entre mim e Deus? Há muitos bons exemplos de pensadores que poderiam dizer algo deste género; pensemos, por exemplo, em Kierkegaard e na sua resignação ante o abismo da existência. Dentro da Igreja, Mestre Eckhart é uma referência desta forma de relação, ainda que a sua posição seja mais matizada – afinal de contas, ele cria na Encarnação de Jesus e isso é proximidade bastante!
É possível falar de Deus de forma unívoca: assim o fizeram os filósofos Pré-Socráticos. Estes pensadores procuravam a causa primeira da realidade entre os elementos naturais e neles viam deuses sobrenaturais; disse Tales de Mileto, o primeiro filósofo, “tudo está cheio de deuses”. Mais recentemente, Nietzsche surge como uma grande adepto desta visão: ele queria matar Deus porque achava que Deus era “matável”, pondo ambos, crente e Criador, no mesmo plano!
Mas, diante desta “complicação” toda, como não cair em extremos?
Creio que Jean-Luc Marion nos oferece uma resposta que nos ajuda a preservar a analogia. Como nos diz em L’idol et la distance, é a distância entre Deus e o homem que permite a comunhão. O problema da linguagem equívoca é que cancela esta relação, mesmo que haja condições para a sua ocorrência. O maior problema que daqui nos pode surgir é ficarmos sempre presos numa hesitação, sem nos decidirmos diante dos muitos sinais que Deus nos possa oferecer como convite: um agnosticismo não-deliberado.
Nos antípodas, a linguagem unívoca – parece-me ser esta a nossa maior tentação quando tratamos estes assuntos – é aparentemente inócua, mas traz consigo um obstáculo maior. “Aquilo que torna ‘Deus’ disponível tanto para O qualificar como para O desqualificar apenas nos dá um ídolo do espectador [de si mesmo]”¹. Podemos compreender o ídolo com base na tradição bíblica: lembremo-nos do bezerro de ouro que o povo de Israel adorou no deserto em vez de Deus. Um ídolo é um deus feito à minha medida, compreendido dentro dos meus limites e das minhas técnicas, um deus sem transcendência. Mas este não é um deus que se adore!
Em vez de ídolos, precisamos de ícones: esta é a alternativa que nos oferece Marion. O ícone nasce dum discurso analógico, que olha a Deus com empatia, com a semelhança possível sem esquecer a diferença entre Criador e criatura. Os ícones preservam alguma similaridade, mas abrem-se à interpretação a partir de um código; a sua contemplação requer lentidão, não se descobre tudo logo nem é pretendido que assim o seja. Mais ainda, o ícone não pretende ser perfeito; aliás, os cânones orientais impedem que o ícone seja “perfeitinho e acabadinho”, há uma necessária dose de imperfeição que lembra que Deus não se põe no bolso – nem na tela! o ícone é uma concretização real de Deus, é certo, mas uma concretização transparente, atravessada por um significado que não se esgota naqueles traços.
A distância entre Deus e o homem é indefinível, mas é esta mesma distância, encarada enquanto tal, que nos atrai a Deus e nos permite receber a Sua bênção ². Quando eu me substituo a Deus, não há graça passível de ser recebida. Quando nos esquecemos disto, o nosso discurso já não está a falar de Deus.
¹ Jean-Luc Marion, The idol and the distance, trad. Thomas A. Carlson, 1st ed. (New York: Fordham University Press, 2001), 198.
² Jean-Luc Marion, The idol and the distance, trad. Thomas A. Carlson, 1st ed. (New York: Fordham University Press, 2001), 198–99.
Imagem: Emily Moter [Unsplash]