Infelizmente, hoje, são poucos os que querem matar Deus

Nietzsche obriga a repensar a fé e, ao dizer que Deus está morto, mantém vivo o problema de Deus. Hoje, porém, o problema parece diluir-se e, isso sim, pode levar à “morte” indesejável de Deus.

Nietzsche, sem a pretensão de apresentar um discurso filosófico-teológico preciso e racional, procura simplesmente dizer, das entranhas, aquilo em que acredita, isto é, a afirmação da Vida, esse «instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de poder» (1). Assim, afirma a existência de um desejo inato, intrínseco a todo o Homem, de poder, de crescer e de se ultrapassar. Trata-se de um instinto vital, um impulso de vida, que o leva a afirmar única e exclusivamente a vida. Para além disso, se a tese de Nietzsche tem por base a afirmação da vida – vida esta que é somente vontade de poder e de domínio -, então o cristianismo, enquanto religião do «rebanho», dos «fracos» e do «ressentimento» (2), tende a matar a vida e, por isso, é uma religião a abater.

Mas o filósofo vai mais longe e, de facto, o «louco» de Nietzsche anuncia pela primeira vez a morte de Deus, n’A Gaia Ciência (3) ; Nietzsche encarrega-se, depois, de o fazer ao longo de toda a sua obra.

Ora, não se mata o que está morto.

Para o fazer, Nietzsche vê-se obrigado a mantê-lo vivo, enquanto problema a refutar, para poder falar exactamente de Deus e defender a sua “morte”. Eis um belo paradoxo que deixa espaço para se fazer teologia, permitindo que, enquanto problema vivo, se possa fazer viver o próprio Deus. O desejo da morte de Deus pode ser terreno fértil para a Igreja se renovar enquanto porto seguro de que Deus vive. Para além disso, alguém que queira tão tragicamente “matar” Deus tem a «potencialidade para abalar o homem na sua falsa quietude existencial, obrigando-o ao SOS que é a primeira abertura para um Deus salvador.» (4).

Contudo, actualmente, estamos perante uma mudança de paradigma: o ateísmo teórico e militante, que vigorava nos séculos XIX e XX, tem sido substituído por um indiferentismo. De facto, cresce o número dos indiferentes e agnósticos, mas também cresce o número dos crentes sem religião, ou religiosos não-praticantes (5). A atitude de base parece ser uma apatia em relação a assuntos religiosos e a Deus, alicerçada na indiferença e no silêncio absolutos. Onde estão as entranhas, o impulso vital, a ânsia de “matar” ou de “fazer viver” Deus?

Vivemos um indiferentismo religioso que, «longe de ser uma indiferença generalizada, consiste num indiferentismo comprometido e responsável» (6). Por outras palavras, as pessoas parecem comprometer-se fielmente a não interessar-se pelo divino, procurando excluí-lo da realidade, das conversas e, pior que tudo, do imaginário, fazendo-o desaparecer. Mas não o fazem como uma revolta, antes tomam a ausência de Deus mais como uma assunção inquestionada (7). Se o agnosticismo ainda pondera o problema de Deus para afirmar não lhe interessar, o indiferente nem sabe, ou não quer saber da existência do problema. O ateu “mata” deliberadamente Deus, o agnóstico “deixa-o morrer” e o indiferente nem sabe do que estamos a falar.

O ateu “mata” deliberadamente Deus, o agnóstico “deixa-o morrer” e o indiferente nem sabe do que estamos a falar.

É aqui que me parece residir o problema maior de Deus – são cada vez menos os que O querem matar. Ele acabará por morrer, assim como o Seu problema, porque já poucos O olham sequer como problema.

Prevalece uma quietude existencial que não parece compatível com a actual inquietação espiritual. Se, por um lado, cresce a procura de formas de meditação e de espiritualidades antropomórficas e antropocêntricas, centradas no encontro do Homem consigo mesmo, através da respiração e do mindfullness; por outro, o Homem da actualidade parece tão auto-suficiente que acredita bastar-se a si próprio, sem sequer chegar a pensar se se basta ou não, negligenciando a possibilidade da «radical e vital necessidade de um Absoluto» (8).

Até em Nietzsche podemos vislumbrar este desejo de um Absoluto no “Super-Homem” – um modelo de homem ideal que ultrapassa o homem como nós o conhecemos, concebido por Nietzsche como uma figura para ser desejada e alcançada pela vontade de domínio e poder (9).

Hoje, parece não existir qualquer inclinação, procura ou desejo de um Absoluto. Existe, sim, uma inerte existência, conformada e indiferente. Encontramo-nos na era do vazio, em que os estímulos externos são muitos e substituem a reflexão profunda interior que encheria o desejo e empurraria o homem para fora de si.

Junto-me a Zaratustra e digo que «já é o tempo de o homem ter uma finalidade. Já é o tempo de o homem lançar a semente da sua mais alta esperança. (…) Maldição! Virá tempo em que o homem deixará de lançar a flecha do seu desejo para lá do próprio homem e em que a corda do seu arco já não saberá vibrar!» (10).

Este tempo chegou, e é já!

Eu não quero “matar” Deus, mas temo a sua inevitável morte, e por isso, grito-a! Porque, mais grave do que o ateísmo “assassino” de Nietzsche, é o indiferentismo que «coloca Deus e a religião fora de questão ou fora de combate». Se o primeiro lhe reconhece “peso” e vê-se obrigado a mantê-lo vivo, o segundo «deixa-o morrer à míngua de lhe prestar o alimento da sua atenção e interesse» (11).

Por isso, se prevalecer o indiferentismo actual, Deus morrerá, sem que ninguém O queira matar!


(1) Friedrich Nietzsche, O Anticristo, trad. Tavares Fernandes, 2a (Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994), n. 6

(2) Cf. Nietzsche, O Anticristo.

(3) Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, trad. Alfredo Margarido, 6. ed, Filosofia & Ensaios (Lisboa: Guimarães Editores, 2000), n. 125.

(4) Jorge Coutinho, Caminhos da Razão no Horizonte de Deus – Sobre as razões de crer (Edições Tenacitas, 2010), 98.

(5) cf. Helena Vilaça et al., Identidades Religiosas e Dinâmica Social na Área Metropolitana de Lisboa (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019); «Identidades Religiosas em Portugal: Representações, Valores e Práticas – 2011» (Portugal: UCP/CESOP/CERC – Universidade Católica Portuguesa, 2011); Stephen Bullivant, «Europe’s Young Adults and Religion», trad. nossa (St Mary’s University, Twickenham, UK | Institute Catholique de Paris, France: Benedict XVI Centre for Religion and Society, 2018).

(6) Claude Geffré, «Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne», trad. nossa, Revue Théologique de Louvain 31, n. 1 (2000): 4.

(7)  Michael Paul Gallagher SJ, «What Might St Ignatius Say About Unbelief Today?» (Homilía, Dublin, 1991), 62, http://www.cultura.va/content/dam/cultura/docs/pdf/cortile/Unbelief.pdf.

(8) Coutinho, Caminhos da Razão no Horizonte de Deus, 85

(9) Frederick Copleston SJ, Nietzsche – Filósofo da Cultura, trad. Eduardo Pinheiro, 3a (Porto: Livraria Tavares Martins, 1979), 119–22.

(10) Friedrich Nietzche, Assim Falou Zaratustra, trad. M. Campos, 3a (Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999), n. 5.

(11) Coutinho, Caminhos da Razão no Horizonte de Deus, 69.

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