Deus, se existir

A primeira premissa, que “Deus é Aquele maior do que o Qual nada pode ser pensado”, é falsa. Não porque diga demasiado da grandeza de Deus, mas porque diz demasiado pouco.

(Nota prévia: contra todas as justas expectativas do leitor, este artigo não se insere num contexto de seriedade intelectual).


A Igreja Católica, mal-grado alguns, está cá há dois milénios; e, se em vinte séculos se pode errar muito, estas duzentas décadas foram dois mil anos de fertilidade intelectual. S. Agostinho e S. Tomás de Aquino são apenas dois nomes que o leitor poderá ter já ouvido, e S. Ireneu, S. Hildegarda, S. João Crisóstomo e S. António de Lisboa são apenas a primeira linha de uma longa enumeração. Estes gigantes intelectuais dedicaram as suas vidas a louvar e servir Cristo e a Sua Igreja, mas estavam convencidos de que não poderiam amar Aquele que não conheciam. Procurar o rosto do Senhor, portanto, significou, para eles, uma busca incessante pela Verdade. Isto levou vários pensadores a formularem os chamados “argumentos para a existência de Deus”. No pódio destes argumentos está o “Argumento Ontológico”, formulado por S. Anselmo na sua obra Proslógion, algures pelo primeiro século do segundo milénio. Eis o que nos diz o argumento.

S. Anselmo de Cantuária pede-nos que aceitemos três premissas:
(i) Deus é Aquele maior do que o Qual nada pode ser pensado;
(ii) Nós podemos conceber esse “algo maior do que o qual nada pode ser pensado”; e
(iii) algo que exista na realidade e no intelecto é “maior” do que algo que exista apenas no intelecto.

Ora, daqui construímos o seguinte argumento: pela premissa (ii), nós podemos pensar em Deus (ou seja, Ele existe na nossa mente); pela premissa (i), nada se pode pensar maior do que Deus; e, pela premissa (iii), existir na realidade e na mente significa ser “maior” do que existir apenas na mente. Segue-se, então, que Deus tem que existir na realidade. (Se o argumento lhe pareceu um pouco confuso, não se preocupe, é uma reacção perfeitamente natural. Mas, confie em mim, é logicamente válido. Se o leitor aceitar as três premissas, deve aceitar a conclusão).

Grandes mentes, como S. Tomás de Aquino, Leibniz, Hume, Kant, Hegel e Gödel, e mentes menores, como Descartes, promoveram uma longa discussão através da história da Filosofia, que continua ainda nos nossos dias e talvez seja um dos principais motivos para que o mundo considere a filosofia absolutamente inútil. O problema, estou em crer, é muito simples. Se Anselmo tem do seu lado a solidez da validade lógica, tem contra si a supremacia perene do Bom Senso. A primeira premissa, que “Deus é Aquele maior do que o Qual nada pode ser pensado”, é falsa. Não porque diga demasiado da grandeza de Deus, mas porque diz demasiado pouco. Deus não é “Aquele maior do que o Qual nada pode ser pensado”: Deus é, isso sim, Aquele maior do que tudo o que pode ser pensado. Deus não é o limite do nosso intelecto; Deus está para lá desse limite, e está para lá desse limite de uma forma tão monstruosa, tão megalómana, tão exuberante, que a própria distância com que está para lá desse limite está, ela mesma, para lá desse limite.

Aristóteles definiu o ser humano como um animal racional. Quando os russos, em 1961, chegaram ao espaço, alguns humanos desafiaram essa definição, ao comentar que, tendo subido ao Céu, os astronautas não encontraram lá Deus. É um comentário triste, mas talvez precisemos de lhe fazer um irmão: se abrirmos a cabeça a um russo, ou a um ateu, ou a um católico, mesmo que se a um católico inteligente, lá não encontraremos Deus. O Senhor da Criação está em toda a Criação, mas está como o artista na obra, não como a mobília na casa-de-banho. É claro que podemos dizer algumas coisas sobre Deus – que é Bom e Belo e Verdadeiro; que nos ama, não porque somos amáveis, mas porque Ele é Amor; que existe desde toda a Eternidade; que é mais poderoso do que o nosso pecado; etc. Mas fazemos estes comentários na posição de quem, tendo acabado de ler Os Lusíadas, elogia o génio de Camões; ou de quem, diante da Pietà, aplaude a arte de Miguel Ângelo.

Pensemos num camelo – refiro-me, evidentemente, aos quadrúpedes de duas bossas, e não aos bípedes políticos de quatro costados. Não digo que pense na palavra “camelo”, mas que faça um esforço por imaginar o animal. Se ajudar, pause a leitura e vá ver um par de fotografias. Diga-me: quão bizarra é a criatura que viu? Agora pense naquilo “maior do que o qual nada pode ser pensado”. Diga-me: o nosso Deus, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacob, o Deus que abriu o Egipto para os nossos pais e que entregou nas suas mãos os seus inimigos, o Deus que desenhou e ordena as estrelas, o Deus que pairava sobre as águas no primeiro dia, o Deus que insuflou a terra… o Deus que fez o camelo, se existir, não é maior do que isso? Não é maior do que aquilo que eu e o leitor consigamos imaginar? Se ainda tem dúvidas, pense na girafa ou no ornitorrinco. Se ainda tiver dúvidas, pense no Homem.

É um velho princípio metafísico que só o maior (metafisicamente falando, claro) pode gerar o menor; o contrário não funciona. É o professor que endoutrina o estudante, não o estudante que ensina o professor; é o pintor que faz uma pintura, não a pintura que pinta um pintor; e, por muito que o bebé obrigue a mãe a acender o candeeiro a meio da noite, foi ela quem o deu à luz. Veja, por isso, caro leitor, o corolário que se segue. Diante de tão bizarra criação, a consequência é imediata: Deus, se existir, é mais bizarro ainda. Mas quem acreditará num Deus bizarro? Quem porá a sua fé na existência de um Pintor que, sendo e emanando a Beleza-em-si, desenhou um animal como a Preguiça? Quem aceitará que um Arquitecto Omnisciente possa ter dado asas aos pinguins? Quem credenciará um Engenheiro que, podendo criar toda a tecnologia do mundo, se dedicou a plantar embondeiros? Quem entregará a sua vida a um Coreógrafo, que, tendo inventado o ritmo, faz o Sol nascer todos os dias monotonamente? Quem se prostrará adorando um Músico que, na harmonia do canto dos pássaros, introduziu a galinha? Quem partirá pelo mundo a anunciar um Encenador que, tendo projectado um papel para cada um de nós, espera que o descubramos in media res?

Então é simples. Há quem diga que Deus é a explicação mais provável para a harmonia do Universo, como se Ele fosse um grande artista e o Cosmos uma grande obra. Mas, tenho aprendido a ver, o ponto é precisamente o contrário. É tudo excessivamente bizarro. A harmonia, se existe, é tal que nos faz rir. Deus, se existir e for um artista, não tenho dúvidas, é um comediógrafo. E aqui está a maior ironia: se o mundo não fosse bizarro, talvez Deus existisse; mas, sendo que o é – e que o é a este ponto! –, Deus tem que existir. É uma piada demasiado boa para se ter feita a si mesma. Deus existe: não porque essa é a explicação mais provável para um mundo harmonioso; mas porque é a única explicação possível para esta cacofonia.  Há um nível de incoerência a partir do qual não é razoável crer que uma história seja verdade; mas há um segundo nível a partir do qual não é possível crer que seja mentira.

 

 

Foto: Kevin Bluer, Unsplash