Este artigo é o quarto de uma série de cinco artigos de divulgação sobre o problema do Conhecimento, e desenvolve-se em particular a partir das conclusões do artigo anterior. Para uma compreensão mais completa, aconselho o leitor a ler também os artigos de 26 de Fevereiro, de 5 de Março e de 12 de Março.
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A pergunta central da Epistemologia, como vimos, é o que é o Conhecimento?. Durante mais de dois mil anos pensou-se que, mais palavra, menos palavra, a resposta estava definida. A Teoria Clássica do Conhecimento, na sua versão standard, define que, entendendo ‘S’ como o sujeito que conhece e ‘P’ como a proposição conhecida:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) S crê em P;
(ii) P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P.
Apesar de a teoria ser bastante atractiva, Edmund Gettier deu-nos, em 1963, dois contra-exemplos, isto é, dois casos (genericamente chamados «casos de Gettier») em que, apesar de o sujeito ter uma crença verdadeira e justificada, não tem conhecimento. Este pequeno artigo, com menos de três páginas, intitulado Is Justified True Belief Knowledge?, causou uma revolução no âmbito da Epistemologia. Neste curto artigo proponho-me a apresentar, sucinta e (como requer o contexto) um tanto ou quanto superficialmente, as três possíveis respostas a Gettier.
Possíveis respostas a Gettier:
As três possibilidades são (1) argumentar que o “conhecimento” é um conceito-fundamental e intuitivo, que não pode ser definido com base noutros conceitos, porque ele mesmo é basilar; (2) argumentar que os casos de Gettier têm algum erro e que não invalidam realmente a Teoria Clássica do Conhecimento; e (3) reformular a teoria, de modo a que esta exclua os casos.
(1) Convido o leitor a examinar a sua própria área de estudo. Seja Física ou Medicina, Literatura ou Direito, existem certamente conceitos; e esses conceitos, naturalmente, explicam-se com outros conceitos, numa cadeia que acaba num grupo de conceitos particulares cujo significado nos é intuitivo. Veja, por exemplo, a definição que Isaac Newton dá de «corpo ou massa» na sua obra Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica: limita-se a definir a quantidade de massa, assumindo “massa” como um conceito primitivo. A linha desta primeira reacção a Gettier é precisamente essa: usamos o conceito “conhecimento” para explicar outros conceitos – o conceito em si é-nos intuitivo. Além disso, e indo mais ao detalhe, autores que defendam esta resposta argumentam que o conhecimento é um estado mental básico, indefinível e inanalisável. Esta resposta é especialmente popular, por exemplo, no âmbito da Lógica Epistémica, onde se prescinde de definir o conceito, usando-o directamente.
(2) Como vimos no artigo anterior, há três condições necessárias para construir um caso de Gettier. (Devido à brevidade deste artigo, não as poderei aqui explicar, mas apenas nomear; convido, no entanto, o leitor a ler o artigo anterior, de 12 de Março). Essas três condições são: que haja uma crença falsa e justificada; que exista um duplo-acaso; e que a justificação de uma proposição universal serve de justificação a todas as proposições particulares incluídas na primeira. Ora, como em Filosofia tudo parece ser discutível, também estas três condições são questionáveis. Afinal, fará sentido sequer falar de Conhecimento onde existe tanto acaso? Ou pode uma crença falsa ser realmente justificada? Pode de facto uma crença falsa, por universal que seja, justificar outra crença? Esta reacção a Gettier, como vemos, passa por questionar os próprios pressupostos dos chamados «casos de Gettier». Também o leitor pode perder algum tempo a questionar esses pressupostos, aplicando a desde-há-muito-conhecida técnica dos “porquês”.
(3) Por fim, a terceira resposta possível é reformular a teoria. Se o leitor leu o artigo de 5 de Março, em que procurei expor a teoria, poderá ter reparado que a terceira cláusula da Teoria Clássica do Conhecimento, a justificação, tem como intuito precisamente excluir do conceito de “conhecimento” situações onde a crença seja verdadeira por um mero acaso. Ora, depois de analisar os casos de Gettier, torna-se evidente que o acaso tem ali um papel fundamental. As várias propostas de reformulação da teoria, então, tendem a reformular a cláusula da justificação, ou então a acrescentar uma quarta condição que, no fundo, restrinja um pouco mais aquilo que aceitamos como justificação. Deixo aqui, em termos breves, algumas reformulações que, desde 1963, epistemólogos fizeram à teoria.
Possíveis reformulações da definição de conhecimento
(a) Uma primeira possível reformulação, defendida por Michael Clark, seria exigir, para além de que S esteja justificado a crer em P, que nenhuma das razões dessa justificação seja falsa. A teoria reformulada tem a seguinte estrutura:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) S crê em P;
(ii) P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P;
(iv) Todas as razões de S para crer em P são verdadeiras.
(b) Uma segunda possível reformulação, defendida por Keith Lehrer, seria que, não bastando que S esteja justificado a crer em P, a sua justificação deve ser irrevogável, ou seja, não pode ser verdadeira nenhuma proposição Q que seja contraditória à justificação de S em P. A teoria assim reformulada tem a seguinte estrutura:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) S crê em P;
(ii) P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P;
(iv) não é verdadeira nenhuma proposição Q, tal que, se S estivesse justificado a crer em Q, não estaria justificado a crer em P.
A este caso, em virtude do excesso de letras (P, Q, S), ofereço um pequeno exemplo. Imaginemos que o leitor, encontrando um amigo de infância, Pedro, agora nos seus trinta anos, na rua, o vê de mão dada com uma pequena rapariga de cinco anos. O leitor então formula a seguinte crença justificada, P: “O Pedro é pai”. Imaginemos ainda que essa afirmação é verdade. Então, o leitor teria uma crença verdadeira e justificada de P. Segundo a Teoria Clássica do Conhecimento, o leitor tem conhecimento de P. Lehrer, no entanto, adiciona uma quarta condição. Aplicando-a ao nosso exemplo, podemos dizer que, para que o leitor tenha verdadeiro conhecimento de P, nenhuma proposição, Q, do género “Todas as tardes o Pedro leva a sobrinha à rua”, pode ser verdadeira. Isto porque, naturalmente, se tal proposição Q fosse verdadeira, o leitor já não estaria justificado a crer em P. De uma forma um tanto ou quanto mais coloquial, poderíamos dizer que Lehrer exige que a justificação do leitor seja “irrevogável”: não apenas que o leitor tenha “boas razões”, mas que nada – conhecido ou desconhecido ao leitor – possa “derrotar”/“revogar” a sua justificação.
(c) Uma terceira possível reformulação, e a última que apresentarei, é defendida por Alvin Goldman. Goldman faz notar que o que acontece nos casos de Gettier é que as razões que tornam P verdade não são as mesmas que justificam que S creia em P. Assim, defende Goldman, devemos exigir, para que uma crença verdadeira seja conhecimento, que esta tenha sido formada por um «método fiável» de formulação de crenças, que formula a crença pelas mesmas razões que fazem esta verdadeira. A teoria assim reformulada tem a seguinte estrutura:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) S crê em P;
(ii) P é verdade;
(iii) existe uma apropriada relação causal que relaciona (i) e (ii).
Todas estas reformulações têm pontos fortes e pontos débeis, que, dada a dimensão e objectivo deste artigo, não poderão ser analisadas. Ainda assim, seria uma pena não sublinhar a grande dificuldade inerente a todas estas reformulações: são demasiado pouco pragmáticas. Enquanto a Teoria Clássica do Conhecimento, na sua simplicidade, era bastante prática – podia ser facilmente aplicada a um caso concreto –, estas reformulações colocam um peso tão grande nos ombros da justificação que tornam a teoria impraticável. Talvez Clark, ou Lehrer, ou Goldman, tenham razão: de facto, analisando as suas reformulações, parecem resolver os problemas levantados por Gettier e dar uma boa definição, uma definição que capte realmente o que significa dizer que alguém conhece uma determinada proposição. Por outro lado, não nos ajudam a saber, com certeza, se este ou aquele caso concreto são conhecimento.
Precisamente por isto, muitos autores escolhem, apesar dos problemas levantados por Gettier, continuar a usar a Teoria Clássica com a sua formulação standard como uma “definição pragmática de Conhecimento”.
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Já analisámos a Teoria Clássica do Conhecimento, os contra-exemplos de Gettier e as possíveis respostas. No próximo e último artigo, talvez mais interessante aos olhos do leitor, procurarei apresentar em que medida é que toda esta problemática – toda a demanda pelo Conhecimento – nos pode servir e mover enquanto cristãos.
Ciclo “Só sei que nada sei”:
Parte 1: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-1/
Parte 2: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-2/
Parte 3: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-3/
Parte 4: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-4/
Parte 5: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-5/
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