Só sei que nada sei – Parte 3

Quando o relógio pára – Os casos de Gettier. Como é que a história fictícia da minha amiga Maria pode derrubar a Teoria Clássica do Conhecimento?

Este artigo é o terceiro de uma série de cinco artigos de divulgação sobre o problema do Conhecimento, e desenvolve-se em particular a partir das conclusões do artigo anterior. Para uma compreensão mais completa, aconselho o leitor a ler também os artigos de 26 de Fevereiro e ­de 5 de Março.

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Diante da pergunta o que é o Conhecimento?, a resposta “mainstream” da Epistemologia (isto é, do ramo filosófico que estuda o Conhecimento) foi, desde ca. 402 a.C. até 1963, a Teoria Clássica do Conhecimento. Na sua versão standard, a teoria define que, entendendo ‘S’ como o sujeito que conhece e ‘P’ como a proposição conhecida:

As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i)   S crê em P;
(ii)  P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P.

Assim, para que eu saiba que «2+3=5», ou a matéria para um exame, ou que «Cristo vive», é necessário e suficiente que: (i) eu acredite nessas proposições (ou conjunto de proposições, no caso da matéria para o exame); (ii) essas proposições sejam verdadeiras; e (iii) eu esteja justificado a crer nessas proposições.

O que aconteceu em 1963 e o que é que mudou? Edmund Gettier, filósofo americano que ainda vive, escreveu um pequeno artigo – «pequeno» significa que tem menos palavras do que este que o leitor está a ler – intitulado Is Justified True Belief Knowledge?. Nesse artigo, Gettier, tomando a formalização acima apresentada, oferece dois contra-exemplos, ou seja, dois exemplos em que, havendo uma crença verdadeira e justificada, não há conhecimento. Ora, basta um contra-exemplo para destruir a teoria, tal como basta um trevo de quatro folhas para contradizer a afirmação «Todos os trevos têm três folhas».

Quais são esses exemplos? O nome «casos de Gettier» refere-se, não apenas aos dois casos apresentados por Gettier no seu artigo, mas a todos os casos que, seguindo os mesmos pressupostos, funcionam como contra-exemplos à Teoria CVJ. Do ponto de vista da história da Filosofia, seria mais interessante colocar aqui os casos originais; mas estes são, a meu ver, mais confusos e intrincados do que necessário. Se o leitor estiver interessado em lê-los, encontrará facilmente o artigo online. Eu, por questões de clareza, usarei aqui uma adaptação literária do «caso de Gettier» formulado por Bertrand Russel.

Eu tenho uma amiga, chamada Maria, que vive em Londres. Lá em Londres existe uma torre muito alta com um relógio na ponta, que me dizem chamar-se Big Ben. Ora, imaginemos que a seguinte história sucedeu à minha amiga (não tenho evidências de que tenha sido o caso, mas isso não é agora de todo relevante). Apenas chegada a Londres, uma londrina pura convenceu a minha amiga de que o Big Ben estava sempre certo. A Maria, com o seu espírito científico, não acreditou à primeira, e verificou, todos os dias, três vezes ao dia, durante um mês, se o relógio estava certo – o mês tinha trinta dias e o relógio superou os noventa testes. A Maria, então, formulou a seguinte crença justificada: «O Big Ben está sempre certo». Uma semana depois, sem que a Maria o soubesse, o Big Ben entrou em manutenção e pararam o relógio precisamente às 9h25 da manhã. Acontece que, ao voltar para casa depois de um jantar de amigos, a Maria olhou para o Big Ben e viu as horas – dizia, naturalmente, 9h25. Como diz o ditado, um relógio estragado acerta nas horas duas vezes ao dia, e foi o caso: eram 9h25 da noite. A minha amiga Maria formulou então a crença verdadeira e justificada de que eram 21h25. É claro que a primeira crença («O Big Ben está sempre certo») é falsa, mesmo sendo justificada. Mas esta segunda crença é verdadeira… e justificada.

Podemos dizer que a Maria sabia que eram 21h25? Segundo a teoria, sim, sem dúvida – cumprem-se os três critérios, que são necessários e suficientes. Mas todos nós teremos uma certa tendência para dizer que, de facto, foi tudo uma grande coincidência e a Maria não tinha verdadeiro conhecimento.

Como disse anteriormente, «caso de Gettier» é um termo genérico que se aplica a qualquer contra-exemplo à Teoria CVJ. Estes casos têm sempre três condições.

(i)   Existem duas crenças justificadas: uma falsa e uma verdadeira. A falsa serve de justificação à verdadeira, e a verdadeira é a que contradiz a teoria. No caso da minha amiga Maria, são, respectivamente, as crenças «O Big Ben está sempre certo» e «Agora são 21h25».

(ii)  Existe sempre um duplo-acaso. Por acaso, a primeira crença, apesar de justificada, é falsa; e, por acaso, a segunda crença (apesar da primeira, que a justificava, ser falsa) é verdadeira. No caso da minha amiga Maria, é por acaso que, sem que ela saiba, o Big Ben está em manutenção; e é por acaso que são de facto 21h25

(iii) Existe um princípio que se chama Princípio de Fechamento Epistémico (PFE). O que este princípio diz é que, se estou justificado a acreditar numa proposição universal, estou consequentemente justificado a acreditar numa proposição particular que esteja incluída na anterior. Isto porque a universal inclui (“fecha”) epistemicamente a particular. No caso da minha amiga, o PFE diz que, como estava justificada a acreditar na proposição «O Big Ben está sempre certo», então também está justificada a acreditar que «O Big Ben está certo agora» e, por isso, que «Agora são 21h25». (Nota: como neste caso, pode haver uma espécie de crença intermédia que não é explicitada – «O Big Ben está certo agora»).

Para que o leitor não fique a achar que os casos de Gettier são sempre coisas a tender para o absurdo, deixo um segundo exemplo, com o qual concluo este artigo. Imaginemos que o leitor é um estudante universitário de Filosofia e que, indo ao corredor dos gabinetes dos docentes procurando o professor de Epistemologia, o encontra sentado num gabinete, sozinho, à secretária, escrevendo no computador. O leitor, então, formularia a crença justificada de que «Este é o gabinete do professor»; e, reparando que o gabinete está forrado a livros, formula a crença justificada de que «O professor tem muitos livros». Imaginemos agora que, na verdade, aquele não é o gabinete do professor de Epistemologia, mas que o seu gabinete, a quinze metros de distância no corredor, está também forrado a livros que são de facto do professor. O leitor, neste caso, tem uma crença verdadeira e justificada de que «O professor de Epistemologia tem muitos livros», baseada na crença falsa e justificada de que «Aquele é o gabinete do professor de Epistemologia»; mais uma vez, portanto, teríamos todos muita relutância em dizer que o leitor tenha conhecimento verdadeiro.

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Diante dos casos de Gettier, qual é o estado em que fica a teoria milenar? Veremos no próximo artigo três possíveis reacções ao artigo de 1963 de Gettier. Para as podermos compreender, no entanto, há que fazer ainda uma pequena clarificação. A formulação standard que temos vindo a observar diz que crença, verdade e justificação são condições «necessárias e suficientes» para que haja Conhecimento. Os casos de Gettier, como o leitor poderá ter entendido por si, propõem-se a demonstrar, não que estas condições não sejam necessárias, mas apenas que não são suficientes. Como resolver isto, no entanto, veremos no próximo artigo.


Ciclo “Só sei que nada sei”:

Parte 1: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-1/

Parte 2: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-2/

Parte 3: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-3/

Parte 4: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-4/

Parte 5: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-5/

 

Foto: Marcin Nowak, Unsplash