Como anunciado no artigo de 26 de Fevereiro, este é o segundo de uma série de cinco artigos. O objectivo da série é poder gerar alguma curiosidade relativamente ao tema filosófico do conhecimento, assim como também mostrar algumas das principais abordagens no contexto da Epistemologia. O ponto particular deste artigo é apresentar a Teoria Clássica do Conhecimento.
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Desde o Teeteto de Platão (ca. 402 a.C.), a resposta à pergunta o que é o Conhecimento? foi sendo desenvolvida naquilo a que hoje chamamos a Teoria Clássica do Conhecimento – ou a Teoria Tripartida do Conhecimento, ou a Teoria CVJ –, que vigorou no trono da Epistemologia até 1963. Comecemos por perceber o nome da Teoria:
a) “Clássica” porque, durante quase 2400 anos, foi a teoria que respondeu à pergunta que aqui nos traz: como já enunciei, o que é o Conhecimento?
b) “Tripartida” porque, como veremos em breve, define o conhecimento através de três condições;
c) “CVJ” porque essas condições são precisamente crença, verdade e justificação.
De forma discursiva, podemos apresentar a teoria dizendo que uma pessoa conhece alguma coisa se, e só se, a pessoa acredita nessa coisa; essa coisa é verdadeira; e a pessoa está justificada a acreditar nessa coisa. Passando a uma apresentação mais formalizada, usando ‘S’ para nos referirmos ao sujeito e ‘P’ à proposição, dizemos que:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) S crê em P;
(ii) P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P.
A teoria, em suma, é isto. É claro que os filósofos adoram discutir e vários epistemólogos desenvolveram versões diferentes da teoria. Alfred Ayer, por exemplo, no seu livro The Problem of Knowledge, diz algo que, formalizado, dá a seguinte tríade:
As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:
(i) P é verdade;
(ii) S está seguro de que P é verdade;
(iii) S tem o direito de estar seguro de P é verdade.
Usaremos a primeira formalização, porque, sendo a formalização usada por Edmund Gettier no seu famoso artigo Is Justified True Belief Knowledge?, nos servirá mais directamente para o próximo artigo.
(i) A primeira condição, a crença, é evidente. Se o João não acredita que “2+2=4”, não pode saber que assim é. É claro que não chega acreditar: já todos nós acreditámos no Pai Natal. Das três condições, esta encarna a dimensão subjectiva do Conhecimento: a crença depende inteiramente do sujeito. Para perceber melhor isto, perguntemo-nos: como é que eu sei que um amigo acredita que tem uma perna partida? Observando, claro, e analisando o seu comportamento, e não apenas o que ele diz. Quantas vezes já encontramos pessoas que dizem acreditar em determinada coisa, mas mostram pelas suas acções que não acreditam realmente? É esse o ponto: é pelas acções do próprio sujeito que eu concluo se ele crê ou não em determinada coisa.
(ii) A segunda condição, também ela, é evidente. Por muito que eu acredite que existe vida em Marte, se isso não for verdade, eu não posso saber que assim é. É claro que não chega ser verdade: é verdade (creio firmemente) que Jesus Cristo morreu pelos meus pecados – e muitas pessoas há que não o sabem. Se não quisermos entrar em diálogos religiosos, pensemos em quantas folhas caem em tantas florestas sem que ninguém o saiba. Ser verdade não chega: para o conhecer, devo acreditar nisso. Ainda assim, ainda que eu tenha uma crença verdadeira, não se segue que seja conhecimento: lembremo-nos de quantas pessoas ganham a lotaria – acertaram na chave (tinham uma crença verdadeira), mas não sabiam a chave. Isso levar-nos-á à terceira condição; mas, primeiro, vejamos que dimensão do Conhecimento nos dá esta segunda condição. Tal como a primeira condição encarnava a dimensão subjectiva do Conhecimento, esta segunda encarna a dimensão objectiva. Para perceber melhor isto, perguntemo-nos: como posso saber se é verdade que o Francês seja a uma das línguas oficiais da União Europeia? Vou procurar os dados objectivos, exteriores… À pergunta é verdade?, então, não há nenhuma interferência do sujeito: é uma dimensão puramente objectiva.
(iii) A terceira condição seria menos óbvia se a tivéssemos de adivinhar, mas é igualmente clara uma vez que a lemos. Porque é que a D. Rita, que acertou na chave do Euromilhões, não sabia a chave? Porque foi tudo uma questão de sorte: a D. Rita não tinha justificação absolutamente nenhuma para ter a crença que tinha. Esta terceira condição encarna a dimensão intersubjectiva do Conhecimento. Já vimos o caso da D. Rita, mas pensemos agora na D. Gertrudes, agricultora do século IX, e no Sr. Pedro, Físico do século XXI, e imaginemos que ambos acreditam que o Sol gira em torno da Terra. É uma crença falsa, sim! Mas é uma crença justificada? Talvez a resposta mais sensata será dizer “sim” para a D. Gertrudes e “não” para o Sr. Pedro. A conclusão, então, é que, ao passo que a crença depende do sujeito (que crê ou não crê) e a verdade do objecto (que é verdadeiro ou não), a justificação é intersubjectiva: estar justificado significa ter boas razões, e “ter boas razões” é algo que se define pela inter-relação entre os sujeitos, ou seja, pela comunidade. É a comunidade que diz que a sorte da D. Rita não são boas razões; e, como a D. Gertrudes e o Sr. Pedro viveram em comunidades diferentes, as suas razões devem ser julgadas segundo critérios diferentes.
A teoria CJV diz-nos, então, que algo é conhecimento se é uma crença verdadeira e justificada; e que algo, se é conhecimento, é uma crença verdadeira e justificada. Isto, por força lógica, significa que, se algo não é uma crença verdadeira e justificada, então não é conhecimento; e que, se não é conhecimento, não é uma crença verdadeira e justificada. E, com tudo isto, a teoria diz-nos ainda que o conhecimento, para além de três condições, tem três dimensões: subjectiva, objectiva e intersubjectiva – relativa ao sujeito, à realidade externa e à comunidade. Sem estes três “agentes”, não pode haver conhecimento.
Uma pergunta possível – mas que não sai no exame – é qual destas dimensões é mais importante, ou mais fundamental. Para a visão standard parece ser a dimensão subjectiva: o primeiro agente do conhecimento é o sujeito que conhece. Já a visão de Ayer parece denotar que a condição mais fundamental para o conhecimento seja a verdade – a realidade externa, que se deixa conhecer, é o agente primeiro. Deixo o leitor, se estiver interessado em dedicar mais alguma energia a este tema filosófico, fazer a sua decisão: qual será a dimensão principal, a condição mais importante, o agente mais fundamental – o sujeito, a realidade ou a comunidade?
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A Teoria Tripartida do Conhecimento dominou a resposta à pergunta o que é o Conhecimento?, como disse, desde ca. 402 a.C. até 1963. No próximo artigo, veremos a oposição de Edmund Gettier a esta teoria. O filósofo americano, que ainda vive, escreveu um artigo revolucionário em 1963, intitulado Is Justified True Belief Knowledge?, em que apresenta dois contra-exemplos à teoria, ou seja, duas situações em que, havendo indubitavelmente uma crença verdadeira e justificada, não há conhecimento.
Ciclo “Só sei que nada sei”:
Parte 1: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-1/
Parte 2: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-2/
Parte 3: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-3/
Parte 4: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-4/
Parte 5: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-5/
Foto: Zdeněk Macháček, Unsplash