Só sei que nada sei – Parte 1

O que significa dizer que conheço? Que nós, metendo entre parênteses a nossa (em parte boa, em parte triste) sede de utilidade, nos deixemos arrebatar pela maravilha de poder conhecer!

Proponho-me apresentar, ao longo das próximas semanas, cinco pequenos artigos de divulgação de uma das minhas disciplinas filosóficas de eleição: a Epistemologia. A Epistemologia, em termos simples, pode ser considerada como a “Filosofia do Conhecimento” e, para quem me conhece, já sabe que, se me interessa, é muito teórica e muito pouco prática. É assim, de facto. É claro que a pergunta o que é o conhecimento? se pode dar em contextos muito práticos, mas a sua resposta é, de qualquer das formas, teórica. Apesar disso, procurarei, no último destes cinco artigos, ligar toda esta problemática à nossa Fé. Afinal não é o discernimento uma questão de conhecimento? Eis o que me proponho fazer.

  1. Neste primeiro artigo, proponho-me a fazer uma modesta apresentação da problemática epistemológica: o que é a Epistemologia? qual é o seu objecto de estudo? quando começou? porque é que é importante? a que perguntas procura responder? como é que entra no meu dia-a-dia? são algumas das perguntas que poderiam ser feitas.
  2. Num segundo momento, propor-me-ei a apresentar a Teoria Clássica do Conhecimento, que procura responder à grande pergunta epistemológica – o que é o conhecimento?
  3. Num terceiro artigo, esporei a principal crítica que surgiu a esta teoria, em 1963, colocada por Edmund Gettier.
  4. Em quarto lugar, tentarei apresentar as três grandes possíveis respostas a Gettier, que foram surgindo desde a publicação do seu artigo, manifestando naturalmente a minha modesta opinião, mas procurando a imparcialidade necessária para que o leitor, se até este ponto sobreviver, pense e decida por si.
  5. Por fim, num quinto e último artigo, procurarei compreender como podem estas temáticas relacionar-se com a nossa Fé.

Seria a minha modesta ambição, e é o meu desejo, que alguém – uma pessoa seria suficiente – possa ler estas toscas palavras sobre um assunto aparentemente tão teórico e desligado das nossas utilidades quotidianas e, como eu, maravilhar-se diante do prodígio que é o Conhecimento. Usámo-lo e temo-lo como um dado adquirido, mas é absolutamente encantador que possamos (se realmente pudermos) conhecer: desde a natureza das plantas até à vontade de Deus para as nossas vidas.

Comecemos o trabalho. A palavra “epistemologia” vem da fusão dos termos gregos “episteme” e “logos”, e é por isso o “Estudo do Conhecimento”. Desde Sócrates, pelo menos, “episteme” era oposto a “doxa”, para separar um conhecimento justificado da mera opinião. A grande pergunta da Epistemologia, então, naturalmente, é o que é o Conhecimento?, e é a essa pergunta – essa busca por uma definição – que moverá os próximos três artigos. Por outro lado, não se pense que essa seja a única problemática da Epistemologia. Qual é a origem do Conhecimento (se a razão, se a experiência)? é também uma das principais preocupações desta ciência. E é claro que todos (ou quase todos) já vimos filmes como The Matrix e Inception e nos perguntamos: será que podemos mesmo conhecer? A questão do rigor – como é que posso saber algo com certeza? –, ou de conhecer verdadeiramente a “coisa em si” (todos já conhecemos várias canetas… mas podemos conhecer a “caneta em si”?), são perguntas que muito provavelmente já nos fizemos.

Antes de avançar, pode ser útil sublinhar que, ao longo destes artigos, nos estaremos a restringir ao chamado “conhecimento proposicional” (algo como «Eu sei que “…”»), em detrimento do “conhecimento pessoal” (algo do género «Eu conheço o João») e do “conhecimento procedimental” (algo do estilo «Eu sei falar português»). A Teoria Clássica do Conhecimento faz esta limitação e também nós, ao longo destes pequenos artigos, nos teremos que restringir nesse sentido.

Ainda assim, o tema não é pequeno! O que significa dizer que «Eu sei que Deus existe»? Ou «Eu sei que o Senhor me chama a fazer isto ou aquilo»? Não são questões banais. Mesmo sem entrar no âmbito religioso, o que significa dizer que «Eu sei a matéria para o exame»? Como veremos, nem a convicção chega para as duas primeiras perguntas, nem a memória para a terceira.

É também provável que o leitor se lembre, dos tempos do ensino secundário, do famoso «Penso, logo existo» de René Descartes. Essa frase icónica é a tentativa de solução do filósofo francês aos cépticos seus contemporâneos, é a busca de uma certeza inicial que pudesse servir de justificação a um sistema articulado de conhecimento (como são, por exemplo, as Ciências Naturais): Descartes, inspirado em S. Agostinho, responde que não pode duvidar que duvida; e, se duvida, pensa; e, se pensa, então existe. Foi realmente no tempo de Descartes – na Era Moderna –, em parte com o nascimento da Ciência Moderna, em parte como consequência natural dos desenvolvimentos e das discussões na área da Metafisica, que a Epistemologia ganhou um lugar central na Filosofia. Mas, em si, já lá estava muito antes: a Epistemologia é tão velha como a Filosofia, que é tão velha como o Ocidente.

 

Como creio que salta à vista, embora se possa fazer em perguntas quotidianas, esta é uma área extremamente teórica. Ao fim e ao cabo, eu não preciso de “saber que sei” para saber… Todos nós (espero) sabemos que “1+1=2”, mesmo que não possamos dizer como é que o sabemos, ou porque é que o sabemos, ou o que significa dizer que o sabemos. Da mesma forma, todo o debate sobre a origem do Conhecimento (se a experiência, se a razão – empiristas contra racionalistas) tem implicações directas muito escassas no nosso dia-a-dia. Muito menos nos são úteis as teorias da conspiração que vêm dizer que não podemos conhecer nada e que somos como cérebros ligados a um computador.

Ao mesmo tempo, a Epistemologia não é de todo inútil. Primeiro, o indagar sobre a natureza do Conhecimento é de extrema importância para a Filosofia da Ciência, que desenvolve o método científico e se pergunta coisas como: até onde podem chegar as Ciências? qual deve ser o método científico? o conhecimento científico é certeza? etc. Segundo, para além dos “cepticismos radicais”, temos o cepticismo já presente nos gregos antigos, muito mais relevante e presente no nosso dia-a-dia: para cada opinião, diriam eles, há argumentos igualmente numerosos e fortes “a favor” e “contra”: como podemos então chegar a ter a certeza de alguma coisa? Não é esta uma reacção justa diante das confusões e discussões infindáveis dos dramas políticos e sociais? E não chegamos a este desespero nos nossos discernimentos pessoais? Terceiro, espero poder chegar, no quinto artigo desta série, a tecer algumas relações entre a problemática epistemológica e a nossa Fé, o que não é de pouca utilidade.

 

Ainda assim, é verdade que, no seu núcleo, a Epistemologia está longe das nossas preocupações quotidianas: no final de contas, é o que chamaríamos uma ciência teorética. Ainda assim, diz Aristóteles, «é pela maravilha que os homens, de antes como de agora, começaram a filosofar». «Pela maravilha» e não pela utilidade. É «o saber pelo saber», diria também Aristóteles; mas, para nós, «o saber por Cristo»: em cada bocadinho de verdade – nas úteis e nas inúteis (eu quase me atreveria a dizer que um bocadinho mais nas inúteis) – está o Senhor, e está lá para que O descubramos, encontremos e façamos d’Ele o centro da nossa vida.

Que também nós, então, metendo entre parênteses a nossa (em parte boa, em parte triste) sede de utilidade, nos deixemos arrebatar pela maravilha de poder conhecer!

 


Ciclo “Só sei que nada sei”:

Parte 1: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-1/

Parte 2: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-2/

Parte 3: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-3/

Parte 4: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-4/

Parte 5: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-5/

 

 

Fotos: Nejc Soklič, Unsplash