“É difícil encontrar um equilíbrio que seja capaz de ver Deus em todas as coisas (…). Felizmente, são vários os artistas que descobrem um equilíbrio entre o demais e o de-menos. Um deles, português, é Samuel Úria”.
O seu último álbum – Canções do Pós-Guerra – comprova, uma vez mais, a afirmação do P. Rui Fernandes, sj (Revista Mensageiro – edição Junho·2019). Na verdade, é brilhante a capacidade que Samuel Úria tem de profetizar e abrir o coração do mundo à mensagem de Cristo, sem que o faça demasiado explicitamente, mas sem que passe completamente ao lado de quem o ouve.
A missão de um profeta é denunciar os desvios de um povo do seu caminho de salvação e apontar novos caminhos de esperança, apelando à conversão. Nas palavras do Papa Francisco, “um verdadeiro profeta é aquele que é capaz de chorar pelo seu povo e também de dizer palavras fortes quando devem ser ditas. Não é tíbio, é sempre direto”, pondo em risco a própria “pele” pela “verdade”.
Para além disso, o contexto e as condições em que surgem profetas, na história de salvação, são sempre desfavoráveis. Hoje, pode-se afirmar que a secularização e as injustiças do mundo atual se assemelham às guerras e exílios do passado, sendo este tempo de Advento propício para nos deixarmos confrontar com o que os profetas nos têm para dizer.
É neste estilo profético que Samuel Úria nos interpela com o seu último álbum, pondo em evidência o que anda desordenado neste mundo, a começar pelo nosso auto-centramento e desatenção, e apelando a uma conversão que aponta claramente, embora subtilmente, para Cristo. É neste subtilmente que me parece residir a genialidade do artista, que introduz, nas suas músicas, inúmeras e subtis citações bíblicas. E trata-se de um subtilmente que o próprio admite, na canção central de todo o álbum (Muro), não ser fácil de entender: “é justo que pouco me entendas, então. /… / Traço os meus trilhos entre aliterações / Mas são biombos para ti /… / E saber complicar / É uma prova de amor, afinal”.
Em cada linha dos poemas que escreve, podemos entrever uma esperança que ultrapassa a crítica fácil e que nos descentra, apontando para Aquele que é capaz de “extinguir-me de mim” (Guerra e Paz).
Assim, a música de Samuel Úria atinge uma profundidade que a transcende, encarnando algo de muito pequenino, mas de muito divino, algo que incomoda quem ouve e que, simultaneamente, atrai.
Ao ouvirmos as Canções do Pós-Guerra, somos inicialmente transportados para um imaginário em que o padrão é cantar as velhas glórias, deixando-nos remoer pelas vitórias do passado, insistindo num saudosismo à força que tenta “empurrar fado prás canções”, “mas não vai” (Aos Pós). Somos pós-tanta-coisa que nos esquecemos que somos apenas pó, e que “tudo o que ri, arquivei / nestes sulcos / nos meus olhos” (Cedo), são apenas memórias que muitas vezes nos prendem ao «o nosso tempo é que era…»
Aprisionados ao passado, deixamos de ser capazes de ouvir o grito da “criação que geme e sofre as dores de parto” (Rom 8, 22), quando somos nós os maiores causadores desse sofrimento. Na música Fica Aquém, de uma forma agressiva e quase desrespeitosa, o cantor mostra-nos o mundo da corrupção, do egoísmo, do desprezo, do desinteresse, do pecado e da morte – o nosso mundo. Acompanhado com uma melodia barulhenta, na qual se distinguem berros capazes de captar a nossa atenção, somos arrancados do saudosismo e confrontamo-nos com aquela que Samuel Úria ousa chamar, numa entrevista, a sua “canção de intervenção”. Vale a pena ver o seu videoclip e sentir na pele as críticas que o próprio “inquisidor, jovem promessa” faz ao nosso mundo, no qual “o caridoso é aziago”, “a virtude é tão devassa” e onde “se peca sempre com critério”.
“Quando o profeta chega à verdade” e a expõe de forma tão crua, como nesta canção, esta “toca o coração e ele ou se abre, ou se torna pedra e desencadeia-se a raiva” (Homilia do Papa Francisco). E Samuel Úria sublinha a exortação de S. Paulo aos Efésios (4, 26-27) procurando alertar para “que o Sol não se ponha sobre a vossa ira”, algo que, em Tempo Aprazado, o próprio admite não conseguir. Consciente de tal facto, o autor convoca-nos para a sua oração e propõe, em Guerra e Paz, que a escutemos e rezemos: “não te retires quando eu sou eu / e volta a extinguir-me de mim”.
Longe de um carácter retórico de um sermão, a música As Traves reacende os ânimos, com uma extraordinária força de pôr uma plateia inteira a cantar o nosso pecado, reconhecendo a incredulidade de “quem diria que um dia era eu?”. Novamente com uma referência bíblica (Mt 7, 1-5), reconhecemos a “vista cansada / de tanto apontar para longe de mim” e, juntamente com a crítica aguçada de Aos Pós e de Fica Aquém, vemo-nos incluídos neste mundo devasso, onde a esperança parece reduzir-se a nada.
O próprio autor reconhece que, neste álbum, “não há paninhos quentes”, mas apenas um “rebentar a bolha” para que “se sinta a indignação”, deixando, contudo, espaço aberto para que os “sobreviventes desta Guerra” possam “recolher os escombros e voltar a erigir a casa”, desta vez, espera-se, sobre rocha firme (entrevista à M80). Na verdade, ao longo do álbum, há um claro apelo a “seguir em frente”, uma vez que “não há volta a dar” (A Contenção).
Não por meio do esforço desesperado de um “santo em dieta” ou de um “asceta sem sal” (As Traves),
mas através de um coração em vias de conversão, podemos escutar os “sons que eu conheço de cor”
e reconhecê-los como “prenúncio” d’Aquele que há-de vir (Menina).
Se lhe perguntássemos se é Profeta, certamente diria que não e, com certeza, Samuel Úria não se veste de “pêlos de camelo”, nem se alimenta de “gafanhotos e mel silvestre” (Mc 1, 6), contudo nas suas canções traz o cunho do profeta que aponta para um Outro, convidando-nos a não sermos saudosos com os tempos passados, nem cegos aos sinais dos tempos presentes. Neste Advento, Samuel Úria, como bom “profeta da esperança, (…) repreende quando é necessário e abre as portas de par em par olhando para o horizonte da esperança”, convidando-nos a percorrer o caminho da conversão enquanto escutamos o “som de uma espera a ter fim” (Menina).