Princípio e Fundamento

Louvor, reverência e serviço não são etapas estanques, mas um fio condutor proposto para a vida humana. E onde conduzem? Ao Único Necessário, ao horizonte de toda a vida e de tudo o que existe: ao descanso no Deus que é Origem e Fim.

Como porta de entrada dos Exercícios Espirituais, que “no fundo são uma ginástica espiritual, uma experiência pessoal de Deus que transforma a vida e liberta o coração de tudo o que o impede de ser livre e fazer a vontade de Deus”, S. Inácio de Loiola apresenta-nos um texto curto e denso, bem ao seu estilo. Sem rodeios, chama a este texto que sintetiza o sentido da vida humana, Princípio e Fundamento: algo que orienta e determina. Neste pequeno artigo espero aclarar este pequeno texto central na espiritualidade inaciana, com uma pequena ajuda de S. Teresa de Lisieux.

 

Princípio e Fundamento

O Homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor,
e assim salvar a sua alma. 
E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, 
a fim de ajudá-lo a alcançar o fim para que foi criado. 
Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim,
e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. 
Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas
em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. 
De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza,
honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o mais,
desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduzir ao fim para que fomos criados. ¹

 

Louvar, reverenciar e servir

Louvor, reverência e serviço não são etapas estanques, mas um fio condutor proposto para a vida humana. E onde conduzem? Ao Único Necessário, ao horizonte de toda a vida e de tudo o que existe: ao descanso no Deus que é Origem e Fim, o repouso que resolve e completa as inquietações e as alegrias humanas.

Mas qual é a razão de tal suposição? Podem estas atitudes conduzir mulheres e homens para uma alegria plena? Temos que partir de dois pressupostos que Inácio de Loiola não questiona: 1) Deus existe, é para Ele que tendemos – como um peso no coração humano que nos leva a Si (uma espécie de força gravítica espiritual) – e só n’Ele a verdade da nossa alegria é completa; 2) O ser humano é capaz de Deus – há um otimismo antropológico inegável: ainda que pecadores, confusos e inconstantes, somos infinitamente amados por Deus; é n’Ele que somos e que havemos de ser mais.

O louvor expande o ser humano para acolher o dom. Através do louvor a nossa inteligência abre-se a uma grande descoberta: não apenas fomos criados, mas somos criados continuamente, porque Deus nos dá continuamente a existência através da sua presença, mais ou menos discreta, na realidade de cada um.

A reverência segue o louvor, como atitude de recolhimento. O dom e a vida dados, a maravilha e o espanto, têm que ser recolhidos, para serem reconhecidos. Esta é uma atitude de humildade: a verdadeira estatura do Homem que curva o rosto em direção ao coração pesado de amor; o jugo suave e carga leve que marca a sua alegria e dependência. Volta-se para Deus, voltando-se para o íntimo.
A reverência é a quietude que deseja olhar o segredo do rosto de Deus.

A reverência é a quietude que deseja olhar o segredo do rosto de Deus.

O serviço continua o caudal do movimento. Agora volta-se para Deus, voltando-se para o exterior.
S. Teresa de Lisieux comparou a alma a uma torrente que se apressa para o mar – que é Cristo. A alma, como esposa impetuosa, segue na direção do Esposo (entenda-se, Deus) e arrasta tudo nessa mesma direção. Todos os que lhe são dados, os homens e mulheres por quem reza, são arrastados nessa corrente. O serviço é isso mesmo: torrente que nasce do Deus-Origem e ganha ímpeto na reverência, segue e arrasta até Deus-Fim: é isso que é salvar.

 

Afeto, indiferença e o tanto quanto

Além disto, de modo pedagógico, Inácio de Loiola alerta para a necessidade de ponderação: o tanto quanto, o esforço ativo e atento de fazer-se indiferente de modo que não queira mais ‘isto’ que ‘aquilo’ para somente desejar e escolher o que mais conduz ao fim para que somos criados.

Ele é consciente de que o afeto tem um peso decisivo, mesmo na mente mais racional. Assim, ser indiferente não é ser insensível. Procurar a indiferença não se trata de cortar com a afetividade, mas de, através de uma vontade viva e consciente, deixar-se transformar pelo Criador, tendo-se posto ao seu dispor. Não há tal coisa como um coração desospedado: criado pelo Amor e para amar, o coração humano permanece mendigo de quem o habite. A ordenação dos afetos e a busca da indiferença não são tarefas de um apático.

Também não devem ser atitudes neuróticas e hiper-escrupulosas. Uma vez mais, consciente da sua hipersensibilidade (que muito transtorno lhe causou), S. Teresa de Lisieux descobriu que estar demasiado voltada para si, buscando escrupulosamente o que mais conduz ao fim para que foi criada, transformava em infantilidade a sua virtude de ser como criança. Descobriu, tal como S. Inácio, que nem sempre fazer mais é fazer o que mais nos conduz a Deus. Deste modo, procurar o que mais nos conduz a tal fim (que é Deus) é, sobretudo, encontrar o lugar de verdadeiro repouso, da pacificação e encontro vital com o Dador da Vida. Por isso ela pôde dizer, cansada de ver como as suas irmãs davam primazia ao esforço face à graça, “como é mesquinho passar o tempo na impaciência de esperar em vez de adormecer no coração de Jesus”! (C. e S., p.25).

O que ordena o afeto, não é senão um afeto maior, dado por Aquele a quem S. Inácio de Loiola convida a louvar, reverenciar e servir.

 

Para terminar, deixo o poema Princípio e Fundamento, de Ruy Cinatti ² :

Quem rega com amor não morre.
Rebentam flores.
Os frutos esplendem.
Rompe a semente
tecido vivo.

Quem rega com amor não morre.
Conhece o início
e os fins do tempo.

Quem rega com amor não morre.
Adianta-se à terra
e serve.

 


¹ Exercícios Espirituais, nº 23

² Ruy Cinatti, Corpo-Alma, Coleção Forma, Lisboa, 1994, p.41