Para ver, ouvir e ler o momento presente

Escolho três lugares que me têm servido para digerir a realidade corrente, desde as conversas insuspeitas que tenho no hospital e na faculdade até à complexidade da guerra e ao sofrimento alheio e distante ao qual não me quero tornar indiferente.

Creio que, em tempos de tumulto, há uma esperança profética, disruptiva, que só a experiência estética nos pode oferecer. A Humanidade descobre-se além da imediatez, na experiência desejada e buscada do Belo[1]. Por isso, quando nos toca a adversidade, análises minuciosas da realidade, ainda que necessárias e pertinentes, não são capazes de alentar-nos; queremos algo que nos lembre, ao final de um dia cansado, a beleza que existe “no caminho pedregoso da salvação, no caminho interminável”[2].

Por isto mesmo, não fiz uma selecção do que mais me toca ou das obras que mais me marcaram, seja pela riqueza do conteúdo ou pela perfeição da sua forma. Escolho três lugares que me têm servido para digerir a realidade corrente, desde as conversas insuspeitas que tenho no hospital e na faculdade até à complexidade da guerra e ao sofrimento alheio e distante ao qual não me quero tornar indiferente.

Vi: Everything, Everywhere, All at Once, de Daniel Kwan e Daniel Scheinert (2022)

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Este filme impressionou-me muito, especialmente porque o vi depois de ler críticas bastante antipáticas. A distopia vai desde o mais cómico ao mais solene, citando outros filmes icónicos pelo caminho. Esta amálgama presta-se a muitas leituras: só isto, seria suficiente para me deixar a matutar neste filme.

Em boa verdade, o que me impressionou neste mashup foi a coexistência de narrativas totalmente díspares concentradas num mesmo espaço de convivência:

Uma mulher que faz das tripas coração pela sua família. Um homem que sente o sufoco de amar esta mulher exausta. Uma filha que se desencanta pela vida e pelas exigências de uma família em tensão constante.

Uma mulher que perdeu o horizonte, porque deixou de saber olhar em redor do que a preocupa. Um homem que, no meio do caos, mantém um olhar contemplativo, sensível à beleza que se esconde no minúsculo. Uma filha que se sente isolada, porque não sabe nem pode ser ela própria.

A nervura desta história – como, aliás, da nossa vida – é a inevitabilidade da opção, que se sente na opressão das possibilidades. Temos de escolher e isso custa! E não só custa, como é mais um passo num caminho que me afasta daqueles outros destinos que vejo ao longe!

Num tempo em que a variedade de oferta e as possibilidades pedem que escolhamos (mesmo contra a nossa vontade, maldito FOMO!), aqui está um lugar que nos estimula a que escolhamos bem, isto é, que escolhamos o Bem!

Ouvi: Hymn to St. Cecilia, Benjamin Britten

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Ainda nesta semana celebrámos Santa Cecília, patrona dos músicos e dos poetas. Por isso, voltei a este coral como modo de relembrar esta figura e, sobretudo, aqueles que se lhe confiam. O poema, de W.H. Auden, foi escrito de propósito (inicialmente como um tríptico), e Britten aproveita a riqueza do texto para nos enquadrar em três atmosferas inseparavelmente diferentes.

O primeiro movimento embarca num espanto obnubilado, de quem sonha acordado, confundido ou estremunhado com o excesso do seu olhar. O segundo é nervoso e frenético, correndo atrás duma dívida que a vida não salda jamais, e acaba num pedido desesperado. O terceiro, uma onda de negrume, lentamente abatendo-se até ser interrompida pelos ecos do sonho inicial, que a vão moldando até à abertura duma fresta para um lugar novo e eterno. Tudo culmina numa voz, como a trompete de um Anjo, que chama o ouvinte a uma nova forma de vida: “O wear your tribulations like a rose”.

Sonho, desilusão, espanto. Entre ritmos e sons nem sempre evidentes, está aqui um lugar que convida a acolher a vida, na sua complexidade. Está aqui o desejo e o sonho inventivo e motor da vida; o receio e o medo que nos tolham, como sombra; e, sobre tudo isto, a disrupção da dificuldade: aí, não há apenas espinhos, mas também a cor e o perfume delicado que é o das rosas.

Li: Aves Dormindo Enquanto Flutuam, Masaoka Shiki

Há uma nudez muito bela na poesia japonesa. O haiku, de tão curto que é, não convida a grandes abstracções. Os temas são cenas da natureza ou eventos quotidianos, captados num momento de agudez.

Não poderia escolher um poema desta antologia. Nem é isso o que me seduz, quando lá volto. Encontro aqui (talvez por arte do editor, talvez por mero acaso) uma sucessão muito natural de estados de ânimo, que parecem acompanhar e ressoar na natureza que os perfuma e lhes da cor. Nunca fui ao Japão, mas conheço estas encostas, estes rios, as suas aves e os cenários bucólicos a que o poeta me envia, com uma naturalidade de circunstante habitual.

No meio da quotidianidade, da repetição automática, é difícil parar! Este é um lugar de silêncio. A simplicidade e a brevidade levam-me, no meio duma pressa, à lenta consideração e, por um momento, a olhar: o ribeiro, que eu vejo a correr sofregamente, afinal consegue ser mais do que apenas um ribeiro. Há aqui uma escola, um horizonte contemplativo, em que se descobre a beleza das minudências, insinuada na vida comum.


[1] Okakura Kakuzo, The Book of Tea (Pan Books Ltd, 2020), 60–73.

[2] Charles Péguy, Oeuvres Compètes. Oeuvres de Poésie (Ed.1918), vol. 5 (Paris: Hachette BnF, 2023), 274.