A questão sobre o ser humano é uma questão tão antiga quanto o próprio pensamento. Segundo diz Aristóteles no início da sua Metafísica, «todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer», e com certeza não haverá maior prazer para o ser humano que conhecer-se e saber-se. Aristóteles acrescenta que a visão é o sentido mais excelente para conhecermos, pois é aquele que «melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre» (1). Na verdade, não é difícil percebermos, por experiência pessoal, a importância da questão antropológica; e tal como Aristóteles, partimos frequentemente do que vemos para deduzir o seu conhecimento. Contudo, muitas das questões sobre o ser humano extravasam o próprio ser e a simples visão das coisas torna-se incompleta.
Antes de Aristóteles, Platão colocou na boca de Aristófanes uma descrição mitológica da origem do ser humano. Segundo este mito (conhecido como Mito do Andrógino), «a nossa antiga natureza não era tal como hoje, e sim diversa». Originariamente, o ser humano tinha uma forma inteira e globular, contendo quatro mãos e quatro pernas e «sobre o pescoço redondo, duas faces, iguaizinhas uma à outra»; uma só cabeça contendo dois rostos. Ora, o ser humano era um ser dotado de uma imensa ambição e começou a conspirar contra os deuses que, com temor, decidiram dividir cada ser em duas metades.
Assim surgiu o humano como o conhecemos, não só pela forma, certamente mais confortável à nossa visão, mas sobretudo pela sua incompletude existencial – um ser dividido que não descansa enquanto não encontra o rosto que o completa (soa-nos familiar a expressão “cara-metade”). Quando a realidade vista parecia limitada para explicar o ser humano, Aristófanes usa uma linguagem simbólica, isto é, para lá do visível, e oferece-nos um conhecimento do ser humano enquanto buscador de rostos, «de modo a restaurar a nossa primitiva natureza» (2).
Fica evidente um interesse pela questão antropológica desde os primórdios do pensamento, questão a que Emmanuel Levinas, filósofo do século XX, se dedicou, dando especial ênfase ao encontro com o outro, face-a-face, no qual o Rosto do outro é definidor da subjectividade. Segundo Levinas, olhar a questão do ser humano através da lente da ontologia ocidental seria (e tem sido) «uma redução do Outro ao Mesmo» (3), numa procura do igual no diferente, do uno no múltiplo. Para Levinas há uma prioridade da ética sobre a ontologia, na medida em que, quando me encontro com um outro vislumbro um totalmente Outro, e o seu Rosto interpela-me e obriga-me a uma resposta primeiramente ética. Assim, a humanidade de uma pessoa, o seu ser e a sua essência, estão profundamente marcados pelo encontro com o Rosto do Outro, perante o qual a sua resposta ética de infinita responsabilidade a define. O Homem torna-se sujeito enquanto numa relação de «sujeição a outrem» (4), geradora desta responsabilidade, como se fosse o eleito, o único capaz de responder ao apelo que o Rosto do Outro lhe faz.
Esta é uma antropologia ideal que se esbarra na realidade actual. Não afirmo veementemente que é a realidade que deva mudar, mas intuo que assim possa ser. Byung-Chul Han, filósofo alemão nosso contemporâneo, apresenta um diagnóstico da sociedade actual, uma Sociedade do Cansaço, Sociedade da Transparência (apontando alguns títulos das suas obras), uma sociedade que carece de uma percepção simbólica, em favor da percepção serial. Segundo escreve em Do Desaparecimento dos Rituais, hoje somos coagidos a produzir, numa incessante ânsia de criar e absorver mais imagens, mais sons, enfim, ruído. Saltamos de uma imagem para outra, carentes de maior profundidade e verdade, quando, de facto, somos enganados a pensar que o mais é amigo do melhor e do profundo.
Um exemplo demasiado evidente é o lançamento de séries televisivas em temporadas inteiras. Lá vai o tempo em que se juntava uma comunidade para apreciar um episódio, dispostos a esperar uma semana para se juntar novamente – «juntar diz-se em grego symbállein». Os rituais geram uma comunidade sem grande necessidade de comunicação. A espera, a demora, o tempo lento são apreciados nos rituais e tendem a criar comunidade. Ninguém conta o tempo que se chora um ente querido que partiu; apenas se está, em silêncio, com aqueles que sofrem. «O termo symbolon pertence ao mesmo campo semântico que relação, totalidade e salvação», mas a ânsia de mais e mais rápido faz-nos esquecer e negligenciar o símbolo, o que está para lá do visto, o que está para lá das coisas.
Ainda assim, é verdadeira a intenção de gerar comunidade, inclusivamente uma comunidade global. Afinal de contas, está na nossa primitiva natureza o sermos symbolon, buscadores da “cara-metade”. Mas pervertemos o caminho para lá chegar. Apesar de nunca se ter visto nem ouvido tanto como hoje, não é por isso que é causada em nós a responsabilidade que define o humano; antes, permanece a indiferença. Esta pode estar relacionada com a distância, geográfica e afectiva, uma vez que somos convidados a olhar milhões de rostos sofredores que habitam o outro lado do planeta, pessoas que nos são distantes. Com certeza, tudo seria diferente se fosse Portugal em estado de guerra, ou um familiar às portas da morte causada pela fome. Ainda assim, a predominância da indiferença parece-me mais associada à dificuldade em repousar sobre as imagens, em nos demorarmos nelas, em escutarmos no seu silêncio. Dando-lhes espaço e tempo para reverberarem no nosso coração – os olhos interiores –, permitindo, no símbolo, «capturar o permanente no fugaz», então estaríamos mais disponíveis para deixar comparecer o Rosto do Outro.
Se insistirmos em ver com os olhos aristotélicos, então não veremos mais que partes de um rosto fragmentado e compreendido, descobrindo as diferenças. Levinas propõe uma nova vista, um novo olhar sobre o Rosto que me permitirá entrever o vestígio, o Infinito para além do Rosto, para além do que vejo, nas palavras de Levinas, para «além do dado» (5), o verdadeiramente Outro. Mas isso só será possível se cultivarmos a percepção simbólica que exige fechar os olhos e render-nos ao silêncio da contemplação. Permitirmo-nos demorar no Rosto, tomando o ritmo lento de um ritual, dispor-nos-á a olhar o Rosto como ícone, como transparência para esse Infinito, capaz de nos revolver as entranhas e criar a responsabilidade exigida.
É verdade que soa a uma utopia impossível de alcançar. Contudo, é exactamente como utopia que a filosofia de Levinas permanece actual e actualizável, uma vez que nos aponta um ideal que nos orienta enquanto seres humanos. A este ideal, Levinas chama-lhe santidade, enquanto qualidade de uma pessoa que, no seu ser, é mais intrínseca ao ser do outro que ao seu próprio ser. Não é por ser inalcançável que a sua persecução seja inútil, pois ao tendermos para um mundo em que os rostos de facto nos afectam, nos movem, nos tiram da indiferença e nos apelam a uma resposta, então tenderemos para um mundo mais humano, mais sensível ao humano e mais perto de restaurar a nossa primitiva natureza – ser buscadores de Rostos que nos completam na relação.
(1) Aristóteles, «Livro I», em Metafísica, trad. Vincenzo Cocco, 2.a ed. (Coimbra: Atlântida, 1969), n. 980a.
(2) Platão, «O Banquete», em Platão (O Banquete, Fedro, Apologia de Sócrates), trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo, Colecção Grandes Filósofos (Lisboa: Edições 70, 2008), n. 189d-193c.
(3) Emmanuel Lévinas, «A: Metafísica e Transcendência; 4. A metafísica precede a ontologia», em Totalidade e infinito, trad. José Pinto Ribeiro (Lisboa: Edições 70, 1988), 31–37.
(4) Levinas, Ética e Infinito.
(5) Levinas, Humanismo do Outro Homem, 64.
Imagem: António ferreira da Silva SJ