O Otimismo (Ontológico) de S. Agostinho

O que diz S. Agostinho sobre a criação? Deus é bom. O que Ele cria tem de ser bom. Logo, o mundo é bom! E o mal?

Deus é bom. O que Ele cria tem de ser bom. Logo, o mundo é bom!

Simplificando, esta é a grande tese de S. Agostinho sobre a criação, sobre o mundo e a realidade que nos rodeia, conhecida como o “otimismo ontológico”. Como seríamos nós, se, tal como S. Agostinho, acreditássemos que o mundo é verdadeiramente bom! Parece que vamos oscilando entre crer nisto e achar que a realidade nos impede e dificulta o caminho para Deus…

Para este santo e filósofo medieval, não há nada criado por Deus que não seja bom por natureza. E isso inclui o nosso mundo e a nossa realidade na sua complexidade, finitude e incompletude. Só há o Bem, do qual tudo surge e do bem não pode sair algo que não seja bom! A criação, para S. Agostinho, como vestígio da Suma Bondade, aponta-nos para o Criador.

Se assim é, como pode ser a realidade que nos rodeia tão cheia de mal? – pergunta a pessoa mais curiosa. S. Agostinho inverteria a pergunta: não é o mal que preenche o mundo, mas é o bem que nos falta! Não sendo criado por Deus, o mal não existe positivamente, é uma deficiência, é a ausência de bem. O mal é como as trevas, a escuridão, que não podem ser definidas de outra maneira que não como “falta de luz”. Assim como está escuro, onde a luz não chega, também assim existe o mal, onde o bem não preenche. Também podemos compará-lo a um buraco na nossa camisola preferida, que não é mais do que a falta de tecido nesse espaço – embora nos tire o gosto de usá-la. Todo o mal precisa de um bem para ser definido!

1. “E Deus disse” (Génesis 1). Tudo começa com a Palavra!

A Palavra de Deus é criadora. Não é indiferente, e muito menos destruidora. Ao contrário da nossa palavra que tantas vezes destrói mais do que edifica, ou se revela alheia à realidade, a Palavra de Deus é eficaz, é a própria ação daquilo que diz. O ato e o dito são uma e a mesma coisa, ou, como diz no livro das Confissões, “Para Vós não há diferença nenhuma entre o dizer e o criar”¹. Para S. Agostinho, a criação acontece a partir desta Palavra que é dita na eternidade e tem os seus efeitos no tempo, também ele fruto do ato criador de Deus.

S. Agostinho coloca Deus neste plano da eternidade, onde não existe um antes e um depois, onde tudo é simultâneo, como se fosse um perpétuo presente. Assim, não podemos dizer que exista um “antes da criação”. O antes e o depois são conceitos que apenas fazem sentido no tempo, no mundo, nos efeitos da Palavra.

Se virmos o tempo como uma linha, a eternidade é como a visão total dessa linha, que nos permite ver onde começa e onde acaba, tudo em simultâneo. E nós, que vivemos no traço, somos como um ponto nessa linha, incapazes de perceber e participar dos pontos que vêm adiante, ou mesmo daqueles que já percorremos.

2. “Gerado não criado” (Credo). O que é afinal o ato criador?

Como todos os bons filósofos, que conhecem os grandes que os precederam, S. Agostinho conhecia bem as teorias de Platão. E foi capaz de perceber o que neles fazia sentido e ajudava nesta sua visão da criação, e o que era incompatível com o seu pensamento.

Platão explicava a origem do mundo a partir de um deus, o Demiurgo, que organizava a matéria pré-existente no cosmos. Não trazia à existência a partir do nada, mas era como um deus organizador. Para S. Agostinho, este não é um verdadeiro ato criador e, por isso, chama-lhe fabricação. O Demiurgo é como um artífice que, a partir de matéria já existente, como a madeira, constrói uma peça de mobília ou uma obra de arte.

O verdadeiro Deus não fabrica, mas cria. S. Agostinho define criação como a capacidade de dar existência àquilo que não a tinha (que não existia), ou seja, a partir do nada, dar o ser às coisas. Não só dar a forma ou a matéria, mas a possibilidade de existir! E só o Ser absoluto o pode fazer. No entanto, o ato criador não traz apenas à existência o que não existe, mas mantém o ser nessa possibilidade (e realidade) de existência.

Existe ainda um outro conceito, o de geração. É o que, na oração do Credo, afirmamos ter acontecido com o Deus-Filho: gerar é formar a partir da mesma substância. Não é criação, pois já existe a matéria, mas também não é fabricação, pois é o próprio ser que se desdobra para formar. Acontece o mesmo, no ato criador de Deus, no ventre daquela que vai dar à luz! A mãe não cria o filho, mas gera-o desde a sua própria carne.

 

3. Iluminação

Esta criação, S. Agostinho explica-a como um processo de iluminação.

De modo semelhante à teoria de Platão, onde havia uma matéria informe (uma espécie de matéria totipotente, de onde tudo poderia surgir, ganhando forma), Deus cria uma matéria tenebrosa, um quase nada. E é daí que Deus cria tudo o resto, dando forma a essa matéria (como o Demiurgo de Platão) como se esta fosse ganhando luz. Tendo como modelo as ideias do Verbo – ideias que estão em Deus, imutáveis e eternas – a criação reflete esta luz divina. À medida que surgem no tempo os efeitos da criação, é como se o mundo se fosse iluminando.

Daqui vem a bondade da criação! Imagem da Bondade e Beleza divinas!

 

Apesar da complexidade de pensamento de S. Agostinho, conseguimos perceber como a sua teoria é completa, sendo sinal de isso, não só a inovação para a época, mas também como esta permanece atual em tantos pontos, mostrando que a fé não se desliga de uma verdadeira compreensão do mundo. Acima de tudo, este santo filósofo pode ajudar-nos a reconhecer como a realidade que nos é dada pela contínua criação é cheia da bondade do Criador. É boa. Verdadeiramente boa!

 


¹ Santo Agostinho, Confissões, trad. Elias Couto e Lúcio Craveiro da Silva, Livros Que Mudaram O Mundo – Público 3 (Oeiras: Ad Astra Et Ultra, SA, 2010), 364.