O estudo da Medicina na vida de um jesuíta

A Medicina moldou-me de maneiras fundas que tenho até dificuldade em explicitar. Hoje, vivo a missão de estudar Medicina na amizade com Jesus, e isso vai-me mostrando que o Bom Samaritano não é apenas uma história, mas um estilo de vida.

Quando entrei para a Companhia, tinha acabado de completar o 4º ano de Medicina com enorme entusiasmo. Era feliz a estudar Medicina, naquela forma mentis, feita de gestos técnicos dirigidos a aumentar a vida nos mais frágeis. Entrei convicto e, com isso, a Medicina, como opção de vida, ficaria por ali – mas não ficou, e foi surgindo como interrogação. Fruto de um longo diálogo – com Jesus, com o Provincial, com bons amigos, jesuítas e leigos – a interrogação confirmou-se, e com ela a possível resposta: dar seguimento a este rumo da Medicina, como jesuíta. Foi esta a missão que recebi e que agora vivo.

Diante desta opção tão particular, parece-me lícito que surjam perguntas: como é que a vida de médico se concilia com a vida de jesuíta? Isso vai realmente servir para alguma coisa?

A minha missão, hoje, consiste em estudar Medicina, mas não é só isso. Não sou um caso “típico”, sou um religioso, consagrado ao Senhor, a estudar numa universidade, no meio do buliço da vida académica de Coimbra.

A articulação destas duas partes, universitário e religioso, tem sido uma grande descoberta – e um grande desafio. Não estou numa universidade da Companhia, em “ambiente controlado”; sou um aluno, como os outros 300 do meu ano, a estudar as mesmas cadeiras, a mesma ciência. Mas também sou de Cristo e quero ser um sinal credível e inquietante do Seu Amor, que chama e toca o coração dos homens com a promessa da vida plena.

A tensão entre estes dois pólos exige-me que coloque em diálogo a minha vida como universitário, dedicado a adquirir as ferramentas e competências técnicas para poder tornar-me médico, e a minha vida como consagrado, que procura dar testemunho do Senhor Jesus no meio do mundo. Sinto o risco de me descaracterizar, para ser aceite no que é o normal dum universitário; ou de me isolar, porque a minha comunidade de jesuítas “não vive ao meu ritmo” – todas estas tentações são, na verdade, fruto dum excesso de eu!

Ainda estou a aprender como a habitar esta tensão. Sou já capaz de reconhecer como é importante a paciência: comigo mesmo, com os outros e com Deus! Escolher o silêncio necessário para perceber o que se passa à minha volta – e não o julgamento fácil, apressado – não me é fácil, mas tem permitido que a realidade revele o que tem de mais belo. A paciência tem-me feito testemunha de conversas e partilhas, com pessoas que mal me conhecem, que provam o desejo imenso de conhecer a Deus no coração de tantos e tantas: tudo isto nascido de uma linguagem comum, técnica, que se faz porta de relação. Com humildade, tenho podido reconhecer claramente que este é um campo a que o Senhor me envia, suscitando em mim o desejo de ser sério e comprometido no estudo: a destreza com a linguagem médica será um grande veículo do Seu cuidado, tanto para os doentes como para os colegas com quem me relaciono e partilho este ofício de cuidar.

Somado a esta escola de paciência, vejo o lado mais propriamente médico, que vivo na rotina. Sendo os meus dias maioritariamente passados em enfermarias de várias especialidades, rodeado de doentes, estes têm um papel de destaque no que vou vivendo. Muitas vezes, são “o caso” que alimenta uma discussão e apenas isso. Ainda assim, naqueles lugares, tenho tomado consciência crescente deste envio aos mais descartados que, como jesuíta, também é o meu. O Bom Samaritano não pode ser apenas uma parábola, torna-se-me um estilo!

Tenho um enorme gosto pela Medicina, não o nego: gosto do desafio intelectual e da forma como esse conhecimento se torna útil e eficaz na relação. Mas, acima disso, tenho sido profundamente tocado e desinstalado pelos rostos despojados das pessoas que encontro no hospital; vejo-os e eles vêm-me, e isso é mais do que as técnicas ou prescrições que se lhes possam oferecer.

Na Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, lê-se:

[A Companhia de Jesus] foi instituída principalmente para a defesa e a propagação
da fé e o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs (…). Foi ainda
instituída para pacificar os desavindos, piedosamente ajudar e servir os que se
encontrarem presos nas cadeias e enfermos nos hospitais e exercitar outras obras
de caridade conforme se julgar conveniente para glória de Deus e o bem universal (1)

A missão da Companhia é, desde a sua fundação, uma missão ao serviço da fé e da justiça. S. Inácio, ao longo da sua vida, dedicou muito do seu tempo e da sua atenção ao cuidado com os mais vulneráveis, nas muitas obras – a que hoje chamaríamos sociais – que deixou. Tinha os hospitais como lugar de hospedagem predileto, pelo contacto que lhe permitiam com os mais excluídos; e deixou bem claro que todos os jesuítas devem conhecer intimamente a Deus Nosso Senhor e aos mais pobres que nos tornam Seus amigos (2). Esta postura foi-se confirmando ao longo da história da Companhia, até hoje: lembremos as Preferências Apostólicas Universais e o mandato que nos legam de “dar a conhecer a Deus” e de “caminhar com os mais pobres e descartados” (3).

Volto ao título: como é que é que Medicina impacta a minha vida de jesuíta?

Hoje, posso dizer que a Medicina me legou um património humano e espiritual que o
Espírito continua a usar para me confirmar como jesuíta. E foi a vida na Companhia de
Jesus, na liberdade e identidade que aí descobri, que me permitiu dar voz ao desejo de
cuidar dos mais frágeis não só espiritualmente, mas também corporalmente. Tenho podido descobrir como os gestos técnicos da Medicina ganham um significado mais amplo e fundo, verdadeiramente sacerdotal.

Mas não sejamos líricos: ainda não estou em posição de oferecer nada! Estou a estudar
para poder acolher e ajudar as pessoas que me forem confiadas nos seus sofrimentos
corporais e espirituais. Por agora, a minha caridade – no sentido mais nobre desta palavra – consiste em sentar-me com alegria para estudar, com os rostos que encontro emoldurados na minha imaginação. As “secas” que tenho de aturar – sim, por obrigação ou por dever – não são tão pesadas quando tenho o cuidado como motor dessas horas de aborrecimento. E, nesta espera, vai amadurecendo em mim o desejo de acolher os que me são confiados, em sintonia com os seus sofrimentos humanos e espirituais.

(1) Fórmula do Instituto (1550), §1 in Ignatius de Loyola, Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares (Lisboa: Cúria Provincial da Companhia de Jesus, 1997), 9.
(2) “A los padres y hermanos de Padua”. Ignatius de Loyola, Obras, 1ª, BAC. Maior 104 (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2013), 744.
(3) Arturo Sosa S.J., «Universal Apostolic Preferences of the Society of Jesus, 2019-2029», To the whole Society of Jesus, 19 de fevereiro de 2019, https://www.jesuits.global/sj_files/2020/05/2019-06_19feb19_eng.pdf.