Filosofia e a Realidade
Dei voltas e voltas para saber como apresentar este texto – e poder dar a conhecer um pouco da formação de um jesuíta, do estudo da filosofia e da minha experiência. Pensei em contar como a filosofia é desafiante para tantos jesuítas que, como eu, vêm da área das ciências. Como escrever um texto é uma autêntica batalha. Pensei escrever sobre o que dizem as Constituições, os decretos da Companhia e dos padres gerais sobre o estudo no juniorado e no filosofado.
Mas, no fundo, o que quero dizer é isto: a realidade é bela e complexa e a filosofia ajuda-me a perceber isso.
Um rapaz disse-me uma vez que a filosofia que estudamos serve para pouco. Que “andamos a estudar uns temas”, mas que a vida no concreto é outra coisa que pouca ligação tem às artimanhas intelectuais dos filósofos. O que este rapaz não percebeu é que estudar filosofia não é um decorar de autores e teorias, mas, a partir delas, ir mais fundo em cada coisa e estar atento, sabendo fundamentar aquilo que é importante.
Dizia um professor nosso que a filosofia é a arte de fazer boas perguntas e de pensar bem. Olhar para a realidade que nos oferece resistência e procurar perceber o tanto que há por trás dela. Pessoas, conceitos, relações. Cada autor abre os nossos olhos para algo novo, neste seu desejo de compreender o mundo e o Homem. Queremos ir mais fundo em cada momento, inserirmo-nos no mundo, na realidade que nos rodeia e ir ao que realmente importa. E nesse encontro, descobrir Cristo que encarna.
S. Inácio e o estudo
O próprio S. Inácio percebeu isso. Este «decide dedicar-se seriamente aos estudos. Sobretudo, porque caiu na conta de que a inserção no mundo real dos homens requer um padre, não só místico, mas também, e sobretudo, capaz de ler, dialogar e responder à realidade humana, com base numa cultura» (1).
Diz na Autobiografia:
«Pois como já no tempo de prisão em Salamanca, não lhe faltavam os desejos que tinha de aproveitar às almas, e para isso estudar primeiro e reunir alguns com o mesmo propósito e conservar os que tinha, determinou sair para Paris, combinando com ele que esperassem por ali, e que ele iria para ver se poderia encontrar modo de eles poderem estudar» (2)
Três coisas muito importantes, que tenho a graça de experimentar na minha vida, são aqui descritas por Santo Inácio : 1) que o estudo vem do nosso desejo de aproveitar às almas, ou seja, de ajudar os outros e encaminhá-los para Deus. Depois, 2) que o estudo, na Companhia de Jesus, apesar de ser algo pessoal, não é (ou não deve ser) individualista: a comunidade tem um papel fundamental no estudo de um jesuíta, um papel tanto de acompanhamento, como de aprofundamento. Por fim, 3) o estudo abre-nos ao mundo, e por isso há que estudar bem. Não é só uma etapa necessária, mas uma exigência de fundo. Assim pretendeu viver S. Inácio, reunindo companheiros e indo para Paris – a melhor das universidades de então – para servir a Deus.
Queremos ir mais fundo em cada momento, inserirmo-nos no mundo, na realidade que nos rodeia e ir ao que realmente importa. E nesse encontro, descobrir Cristo que encarna.
O estudo hoje
O estudo, enquadrado na formação de um jesuíta, especialmente o estudo da filosofia, não se fica apenas pelo saber isto ou aquilo. Antes, procuramos «que todos os jesuítas em formação alcancem uma integração pessoal da dimensão espiritual, apostólica, comunitária e intelectual na sua formação» (3). Esta é a missão que nos é confiada durante este tempo. É o modo concreto como somos chamados a participar da missão de Cristo – o que cada um vive de modo muito próprio.
Para muitos o tempo de estudo de filosofia e humanidades é um descobrir da utilidade do inútil (como diz o título do livro de Nuccio Ordine). Um descobrir das artes e das humanidades, da importância que elas têm na nossa vida, inclusive na vivência da nossa fé. Assim, descobrimos a diversidade de opiniões e aprendemos o diálogo nessa diferença.
Este é também um tempo que me ajuda a perceber como se estrutura racionalmente a minha fé. Perceber que o cristianismo não é uma crença num Deus longínquo e irracional, um louco por trás do cosmos, nem é um amor ilógico (embora tenha a sua dose de loucura), mas é desde o seu início um desejo de conhecer o Deus que se dá a conhecer, que encarna. Que tem uma inteligibilidade própria e que nos concede a graça de entrar nessa Sua realidade, ainda que de modo incompleto. Nos primórdios do cristianismo, os cristãos optaram pelo logos grego – o lógico que desafiava a mitologia e que nos leva a poder dizer que o nosso Deus é um Deus real encarnado na realidade, ainda que vá muito para além disso.
(1) José Manuel Martins Lopes, SJ, O Projecto Educativo da Companhia de Jesus: dos Exercícios Espirituais aos nossos dias, Estudos Sociais 4 (Braga: Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, 2002), 37.
(2) S. Inácio de Loyola, Autobiografia de Santo Inácio de Loiola, 2a ed, Escritos Autobiográficos (Braga: Editorial A.O., 2015), n.o 71.
(3) Peter-Hans Kolvenbach SJ, A Formação do Jesuíta, Documentos da Companhia de Jesus 31 (Braga, 2005), 68.