Bem poderia escrever palavras bonitas sobre a razão pela qual um jesuíta estuda bioética, contudo, o meu percurso nesta área tão vasta apenas agora começou. Desta forma, pareceu-me presunçoso tentar responder a esta questão sozinho. Assim sendo, fui à procura daqueles que me antecederam, quer como jesuítas, quer como bioeticistas, e convidei o P. Vasco Pinto de Magalhães, SJ para uma boa conversa.
Não lhe chamo entrevista, porque acabou por ser num formato de conversa descontraída que fomos percorrendo alguns pontos que nos pareciam importantes para melhor entender a importância de um jesuíta estudar bioética. (1)
O que é a ética?
Ética é o conhecimento do ser humano no sentido de poder perceber aquilo que humaniza. Com certeza não se trata da definição concreta, mas a ética é a ciência da humanização. Na verdade, ethos significa caráter e habitat, portanto a ética é a casa do ser. Nesta medida, quem estuda ética, estuda os caminhos de humanização. E para saber onde o humano pode chegar é preciso conhecer o humano, é preciso conhecer a bio, a vida. E quanto mais tiver um conhecimento profundo e crítico sobre a vida humana, mais posso saber o que é que é bom e o que é que é mau.
Mas a ética não se fica por um saber distinguir bem e mal, e parece apontar para a ação…
De facto, a ética procura dizer ao ser humano aquilo que deve ser feito e aquilo que deve ser evitado. Ora, deve ser feito aquilo que é mais humano e mais humaniza. A ética não é estática, mas é uma ciência dinâmica, uma vez que é o estudo daquilo que, pegando na realidade, a torna mais o que ela é. Por outras palavras, ética é aquilo que o homem deve ser para ser Homem.
E como é que se pode concretizar a ética?
Temos assistido a duas tendências que podem cair no excesso: a ética dos princípios, que pode cair no legalismo, negligenciando o caráter subjetivo da ética; e as éticas de situação, que defendem que “a cada situação a sua ética”, caindo no perigo do subjetivismo. Entre estes dois excessos, deve haver uma saudável conciliação, visando uma ética dos princípios em situação. Resumidamente, uma boa ética deveria procurar perceber como é que o princípio se aplica no concreto da situação, sendo fiel às duas coisas. Ora, isto é discernimento.
Partindo de uma noção geral dos princípios que mais humanizam, compete à ética concretizar o modo que mais se adequa para os aplicar. Neste sentido, surge a bioética enquanto estudo dos comportamentos, ideais e objetivos em ordem à humanização. Tal como a ética geral, a bioética estuda a pessoa, o ser humano, na sua realidade concreta social e cultural, mas partindo e culminando na sua dimensão biológica.
A bioética é a ética do humano e do mais humano, na procura desse mais humano.
Qual é, então, a mais-valia do estudo da bioética para a formação de um jesuíta?
O estudo da bioética acrescenta à formação do jesuíta um conhecimento da humanidade, dos seus valores e das suas dependências. Estando a bioética assente num estudo profundo da antropologia, é necessário ter em conta que, enquanto jesuítas (e cristãos) temos uma visão do humano à luz de Cristo. O estudo da bioética devolve-nos constantemente para a antropologia cristã de que somos seres espirituais, a caminho do verdadeiro Homem.
E qual o contributo que um jesuíta pode dar à bioética?
O jesuíta estudará a bioética na forma de discernimento! Mais que “ingressar” numa escola ou noutra, usaremos aquilo que nos distingue, isto é, o pensamento crítico. Longe de propagar um moralismo, no qual se aplicaria um conjunto de princípios absolutos, o jesuíta, conhecendo os princípios, procura perceber como é que eles se aplicam na realidade concreta – como se aplica a uma pessoa consciente e livre, a uma criança, a uma pessoa em estado terminal, etc. No âmbito deste pensamento crítico sobre a moral e os princípios a aplicar, o jesuíta pode dar um enorme contributo através do discernimento.
Diria que o pensamento crítico está para a ciência e a bioética, como o discernimento para a vida espiritual.
Pode um cristão, jesuíta ou padre entrar em desvantagem numa discussão de bioética, acusado de uma posição enviesada à partida, sobretudo num mundo cada vez mais secularizado?
Não! Quando muito, entramos em vantagem porque acreditamos que temos uma visão enriquecida do humano, uma antropologia que consideramos mais profunda e mais plena, numa não negação ou negligência da dimensão espiritual do ser humano, que para nós se concretiza em Cristo.
Contudo, pode tornar-se uma desvantagem quando e se entra na bioética numa atitude moralista e pouco crítica. Argumentar “está no Evangelho que é assim” é desde logo fazer uma bioética viciada. Outra coisa é perceber os princípios que me regem e esses devem ser humanos, sendo que a dimensão espiritual não pode ser tida enquanto acessória, mas fundamental. E quanto maior for o conhecimento humano, biológico, social e cultural – com base numa antropologia sólida – mais perto estaremos de provar a importância da dimensão espiritual.
E qual é a importância da dimensão espiritual para a discussão em bioética?
Cristãmente, o Espírito é a realidade humana (enquanto ser bio-psico-socio-cultural) virada para a relação. Somos espirituais na medida em que somos relacionais e que podemos sair de nós. Se esta realidade é egocêntrica, então destruiu-se a dimensão espiritual. Na antropologia cristã, a dimensão espiritual não é mais uma, mas um modo do todo. Se este modo está virado para o amor, então sou um ser espiritual, porque toda a minha realidade bio-psico-socio-cultural cresce por uma relação saudável. Se estou fechado em mim próprio, então a minha espiritualidade é negativa, sou um ser fechado em si próprio, que não sopra, que não dá nem recebe. A espiritualidade é um modo de ser do todo em relação. Através desta noção do ser humano não se permite que a discussão em bioética se feche na dimensão biológica, mas implica que se olhe o todo da realidade humana.
Que legado a Companhia de Jesus deixa e quer construir no mundo da bioética?
Tudo entra no “serviço da fé e promoção da justiça”, pois é uma fé ao serviço da humanização e uma justiça que vai para lá da justiça social, uma vez que o verdadeiro sentido bíblico da justiça é da pessoa ajustada ao bem, e ao bem maior. Isto supõe uma educação para fazer escolhas de valor e que, por isso, supõe coisas muito importantes na antropologia: aprender a ser mais livre, mais discernido e mais capaz de decidir. Aqui entra o Princípio e Fundamento [EE 23], pois o ser humano distingue-se pela capacidade de tomar decisões responsáveis, construtivas e humanizantes. E isso é a ética. Nesse sentido, a ética é a ciência das ciências, porque é a ciência do mais humano. Se quisesse resumir numa fórmula básica: ética é aquilo que se deve ser para ser o que se é.
[Fim da conversa]
Termino este artigo com pena de não poder transcrever a nossa conversa na totalidade. Na verdade, saí do gabinete do P. Vasco renovado no meu entusiasmo por estudar bioética, confiante de que se trata de uma missão ao serviço da fé e promoção da justiça. Digo-o enquanto jesuíta e enquanto médico, enviado a este mundo onde decisões difíceis e importantes são tomadas diariamente. Para isso, procurarei «revestir-me da armadura de Deus» (Ef 6, 11) e entrar no hospital de estetoscópio ao pescoço, o livro dos Exercícios Espirituais nas mãos, e o coração centrado em Cristo, o verdadeiro Homem, que me chama à salvação das almas e, agora também, dos corpos.
(1) Escrevo este artigo num estilo de entrevista para melhor e mais facilmente se poder seguir aquilo que foi dito. A ordem e a formulação das questões não representam ipsis verbis a nossa conversa, tendo sido realizada posteriormente a estruturação do texto.