“O Comendador” e a rusticidade própria do viver minhoto

Um Minho que não se pretende paisagístico. Não sendo essa a sua preocupação, Camilo procura dar importância ao interior desta terra: aos vícios e virtudes dos seus habitantes, às relações que fazem daquela terra “o Minho” e “minhotos” os que aí vivem.

O Comendador é uma belíssima novela de Camilo Castelo Branco, pertencente à obra Novelas do Minho. Esta história apresenta-nos o aparecimento de uma criança numa aldeia minhota, em meados do séc. XIX, encontrada por uma viúva devota. Diante do perigo de morte do infante, e segundo a teologia própria daquele tempo, a sua protetora procura o pároco de imediato, para que este possa batizá-lo e, assim, não se perca «um anjinho do céu» (p. 92). 

Para além do modo como fui cativado por esta novela (e por outras deste livro), o principal motivo para escrever este texto é a sua riqueza vocabular e simbólica, expressa não só pela linguagem rústica (muito bem conseguida por Camilo) mas também por todo o cenário minhoto no qual o autor nos insere. Um Minho que não se pretende paisagístico. Não sendo essa a sua preocupação, Camilo procura dar importância ao interior desta terra: aos vícios e virtudes dos seus habitantes, às relações que fazem daquela terra “o Minho” e “minhotos” os que aí vivem. Quer fazer-nos ver aquilo que não viu D. António da Costa, a quem dedica a novela: «os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila» (p. 84).

Assim, abordarei o texto segundo um esquema que nos foi apresentado pelo P. Mário Garcia, considerando as dimensões vocabular, imagético-simbólica e temática do texto. 

Dimensão Vocabular

Atentando às palavras empregues no texto, é facilmente percetível o seu estilo rústico e simples, que nos transporta para um ambiente rural e paroquial – o ambiente que Camilo procura dar a conhecer. Estes vocábulos são, por um lado, usados pelo autor nas descrições (em expressões como «arraiar», «sobraçando a bassoura de giesta para barrer o chão», «Depois, desandou para a residência, e mandou dizer ao abade que topara no adro uma criança, que parecia estar a despedir»), como também nos discursos diretos (veja-se, por exemplo, nas falas de Joana: «T’arrenego! (…) Você atira? Tem má manha!»). 

Um segundo aspeto que sobressai nesta novela de Camilo, é a sua capacidade descritiva, com o recurso constante de adjetivos, que imediatamente nos dá a conhecer o ambiente vivido pelas personagens, assim como as relações entre elas e os seus próprios feitios. Parece que o autor apenas descreve o exterior da vida na medida em que disso necessita para descrever também a vida interior. Tomemos por exemplo a descrição inicial: 

«Manhã chuvosa e frigidíssima. O zimbro rufava nas frestas envidraçadas da igreja de Santa Maria de Abade. Ringiam as carvalheiras varejadas pelo norte. Ao arraiar do dia, a devota dos Três Reis Magos, a tia Bernabé, tecedeira, – viúva do operário Bernabé, que lhe deixara o nome e uma cabana com sua horta – ergueu-se, foi à residência paroquial pedir a chave da igreja; e, sobraçando a bassoura de giesta para barrer o chão, e a almotolia para prover as lâmpadas, entrou no adro» (p. 91)

A descrição da manhã aparece como um preâmbulo da tia Bernabé, preparando a sua chegada na história, uma mulher simples “varejada” pela vida que, mesmo num raiar de dia agreste, cuida da igreja, num misto de devoção e dever. Como veremos mais adiante, não será indiferente que seja esta mulher a encontrar o menino. Ao apontar os elementos constitutivos da cena, o autor recorre com expressividade a vários adjetivos, como podemos ver no seguinte excerto, que envolve o Sr. Abade e Joana, a sua criada:

«E, enquanto a moça com jeitosa meiguice lhe encanudava nas pernas cerdosas as grossas meias alisando-lhas ao correr da tíbia, resmungava ele» (p. 93)

Este parágrafo é um bom exemplo do que procuro dizer, pois ajuda-nos a compreender como a cena montada por Camilo nos mostra bastante mais do que apenas o visível. Em primeiro lugar, o uso expressivo dos “s” e dos “c” que sonorizam o movimento meigo das meias a subir pelas pernas do padre (“moça”, “jeitosa”, “meiguice”, “pernas cerdosas as grossas meias alisando-lhas”), enfatizando o carinho de Joana pelo abade, que transparece tanto pelo serviço que faz como pelo modo que o faz (“com jeitosa meiguice”). Depois disto, somos confirmados na personalidade do padre, que se vai descobrindo ao longo do texto: homem novo e carrancudo, cuja única alegria na vida de pároco lhe parece vir do amor da criada, resmungando na hora do serviço a que foi chamado. 

Dimensão Imagético-Simbólica

Camilo Castelo Branco nas suas novelas procura aproximar do real a sua própria ficção, como que desejando uma certa credibilidade diante dos seus leitores. Na introdução desta novela, que dedica a D. António da Costa, e sabendo que é ficcionada, chega a chamar a esta novela um estudo sobre o Minho – «Um dos meus estudos (…) é esta historinha que lhe dedico, meu nobre amigo» (p. 90).

No caso deste excerto d’O Comendador, faz parte deste esforço literário de apagar a fronteira entre o real e o imaginário o facto de Camilo situar a história numa data e num lugar concretos: seis de janeiro de 1832 em S. Maria de Abade – exercício literário que continuará ao longo de toda a novela, nomeando locais reais (como Vila do Conde, Famalicão ou a Sé de Braga) e datas (por exemplo, março de 1852, na página 105).

Obviamente, estes dados biográficos não são indiferentes para a história e para o objetivo do autor, pois é esse Minho do séc. XIX que procura descrever através das suas personagens. Embora fictícias, estas são personagens-tipo através das quais Camilo nos conta mais do que as suas próprias histórias, dando-nos a conhecer uma realidade concreta. Retomemos o exemplo da tia Bernabé, cuja descrição inicial já vimos e que nos lembra imediatamente tantas outras mulheres como ela: mulheres simples e devotas, viúvas zeladoras nas suas paróquias. 

O texto é construído a partir do momento em que esta mulher encontra uma criança abandonada e decide cuidar dela, como seu filho. Não é inconscientemente que o autor faz com que seja esta mulher, que pouco ou nada tem, aquela que acolhe e cria o enjeitado. A sua pobreza e simplicidade está patente na resposta que dá ao abade: «Enquanto eu puder fiar uma meada e tecer uma teia, dou-lhe o meu caldo e o meu pão» (p. 95).

Parece-me importante salientar outro ponto simbólico, em relação a este achado: a semelhança implícita entre o nascimento do Menino Jesus e o aparecimento do menino na história de Camilo. Tal como os reis Magos visitam Jesus, é uma devota destes que socorre aquele que chora, embrulhado entre panos nas raízes que uma oliveira secular. E esse local «em que os cevados forçavam luras com o focinho» (p. 96), pela maneira como é descrito, tanto nos recorda a rudeza da gruta do presépio como a manjedoura que alimentava os animais ali presentes.

Assim como a tia Bernabé, também este abade nos transparece a dimensão interior do Minho: um jovem padre, avesso a trabalhos e devasso nos amores, que procura cuidar mais de si do que preocupar-se em ser pastor. Um homem de vícios corrompido pela preguiça e pela luxúria – ainda que mais adiante nos dêmos conta do seu arrependimento e retidão nas coisas de maior monta.

Posto isto, apercebemo-nos do contraste que estas primeiras páginas nos dão entre a relação da tecedeira com o menino e da relação do abade com a criada, salientando a convivência entre o sublime e o vulgar, coabitantes do mundo interior retratado. 

Dimensão Temática

Considerando a dimensão temática do texto, retomo o que dizia na introdução. O autor é bastante explícito no seu desejo para esta obra: na rusticidade própria do viver minhoto (que é também uma forma de verdade), desvelar e descrever o seu interior, os vícios e virtudes das pessoas. Isto porque são elas que fazem o Minho e o tornam especial, diferente do resto. É a verdade patente nos habitantes desta região, a «fragrância das almas inocentes», que os torna diferentes. Quer seja com a candura ou com a rudeza própria, gera no autor a empatia que este procura demonstrar.

Termino com uma citação que ilustra bem esta questão:

«Há treze anos que apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo dos pinheirais e das fragrâncias das almas inocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho, nivelados com os saloios da Estremadura, eram os cândidos pastores da Arcádia comparados aos malandrins de Gomorra. Um dos meus estudos, no intuito de me habilitar para o confronto do saloio com o minhoto – da raça sarracena com a galega – é esta historinha que lhe dedico, meu nobre amigo» (p. 90).