O ator é um cuidador

A boa morte e a boa vivência da doença por parte de uma pessoa, quando acompanhada por um cuidador, dependem muito do papel deste. Há um mistério grande no saber adoecer e morrer, e ainda um mistério maior no saber deixar partir. Também no teatro, o ator morre para surgir a personagem e, como bom cuidador, abre espaço para dar vida à peça.

O cuidado da pessoa doente por parte do profissional de saúde envolve, também, uma atenção especial ao papel do cuidador informal. Este, quer seja família, amigo ou um empregado de uma empresa de cuidados de saúde, vive a partir de dentro a história da pessoa doente. Por isso, a escuta atenta do cuidador é fundamental para melhor conhecer a história da doença e da pessoa doente. Adicionalmente, a boa morte e a boa vivência da doença por parte de uma pessoa, quando acompanhada por um cuidador, dependem muito do papel deste. Há um mistério grande no saber adoecer e morrer, e ainda um mistério maior no saber deixar partir. Também no teatro, o ator morre para surgir a personagem e, como bom cuidador, abre espaço para dar vida à peça.

Há um mistério grande no saber adoecer e morrer, e ainda um mistério maior no saber deixar partir
 

Para além disso, o teatro, sob a perspetiva das humanidades médicas, pode ser muito informativo para a arte do cuidado da pessoa doente. Nesta arte, o jogo de luzes, o cenário, a interpretação dos personagens, o constante movimento do olhar que é exigido ao espetador para acompanhar a ação em cena, não são meros complementos ao texto escrito. Se assim fosse, as peças de teatro seriam apenas publicadas em texto escrito. Posto em cena, o texto é envolvido de todas estas ferramentas que ajudam a sublinhar a história narrada. A história de uma peça é contada através da narrativa do texto, apenas quando este se encontra envolvido num jogo de movimento, luzes, silêncio, música, etc. Por outras palavras, as didascálias tornam-se a chave do texto escrito, e o meio pelo qual o espetador é convidado a transformar-se em parte integrante da peça. Uma peça de teatro não é para se ler, mas para imersivamente se ver, num convite a entrar em cena, onde a proximidade com a ação nos lança inevitavelmente para o curso desta. Só sai indiferente do teatro, quem não for ao teatro.

Pensando no cuidado da saúde, quais serão as didascálias da pessoa doente e da sua história? Encontramo-las na conversa com o cuidador?

Ao ver a peça de Edward Albee, “A Senhora de Dubuque”, conseguimos fazer o exercício de perceber aquilo a que o teatro nos obriga enquanto espetadores atentos e como isso pode dizer muito da nossa atenção enquanto profissionais de saúde. Por outro lado, esta peça aborda o papel do cuidador informal de saúde. Portanto, são dois coelhos numa cajadada só.

No início desta peça, somos lançados para o sofá da sala de estar de Sam e Jo, um casal de meia-idade que passa por um momento definidor da sua identidade, a doença terminal de Jo. Sentados no sofá, juntamente com dois casais aparentemente seus amigos, encontramo-nos dentro de um jogo de identidade: “Quem sou eu?”. Aliás, esta é a frase com que começa a peça. O jogo é simples: através de apenas vinte perguntas os restantes jogadores têm de conseguir desvelar a identidade da personagem escolhida.

O espetador, confundido entre risos e o desejo de entrar no jogo e de adivinhar a personagem, foi já lançado para a questão que acompanhará a história toda, isto é, a identidade. Assim, entramos inadvertidamente na reflexão profunda da identidade da pessoa doente que caminha para a morte, assim como daquele que a acompanha e cuida neste caminho.

A peça, dividida em dois atos, apresenta uma evolução evidente em vários aspetos cénicos, havendo uma ruptura clara entre ambos os atos. Ao longo da peça, observamos uma diminuição progressiva da luz difusa que ilumina de amarelo toda a sala de estar, sugerindo-nos a entrada gradual no subconsciente do Sam. Quando entramos no segundo ato, a luz difusa existe somente num grau mínimo, dando lugar a dois focos de luz branca que realçam, ora Elizabeth (personagem misteriosa que aparece apenas no segundo ato), ora Jo. Torna-se muito evidente: entrámos definitivamente na mente de Sam e, com isso, cresce o caos, o uso do calão, o movimento das personagens que anteriormente se encontravam mais estáticas sobre o sofá. E com este caos, uma só coisa permanece: a pergunta “Quem sou eu?”.

Elizabeth, esta personagem misteriosa que se apresenta como “mãe da Jo”, mas que nada tem que ver com a descrição feita dela durante o primeiro ato, mais se assemelha a um anjo da morte, acompanhada pelo seu cómico e perspicaz advogado, Oscar. Elizabeth sabe o que acontece naquela casa, pressente os sentimentos do próprio Sam e, quando vê Jo, convida-a a entrar no seu abraço eterno. Jo aceita e, numa paz não resignada, mas profundamente aceite, abandona a ironia e a irascibilidade do primeiro ato, para se ficar na ternura paciente do colo de Elizabeth. Sam não consegue compreender esta aceitação de Jo a entrar no colo da morte. Ele encontra-se caótico, escuro, bloqueado na única questão que não sabe responder (“quem sou eu?”).

Sam devolve a pergunta a Elizabeth, uma vez que esta não lhe parece ser quem diz ser, e Elizabeth afirma assertivamente “se não sabes quem és, como poderás saber quem eu sou?”.

A sua identidade enquanto marido de Jo, não permite que esta morra. Morrendo ela, morre o Sam.

O jogo da identidade com que iniciou a peça ganha contornos maiores e mais reais à medida que este parece ocorrer cada vez mais na mente de Sam. De facto, sempre que tenta dar uma resposta à pergunta, apenas sabe dizer que é “Rómulo e Remo”, ou “o marido da Jo”. Nem o nome, nem a profissão, nem um gosto ou uma característica pessoal, apenas uma personagem de um jogo ou alguém que apenas é enquanto referente a um outro. Durante o caos do segundo ato, Sam acaba por confessar à mulher que a sua aceitação da morte o fará desaparecer (“se morres, eu não sou ninguém!”).

Aquele que durante o primeiro ato parecia ser o herói da peça, enquanto marido próximo, cuidador, preocupado e solícito, no segundo ato, rapidamente se torna, não um meio para a história, mas na própria história. A sua identidade enquanto marido de Jo, não permite que esta morra. Morrendo ela, morre o Sam.

A sentença de Elizabeth é dolorosa para Sam: “ele não estava contente com as coisas como estão. Ele queria que tudo voltasse a ser como nunca foi”. Este afundamento existencial culmina com o movimento final do segundo ato, onde Sam admite finalmente: “não sei quem sou”. Mesmo perante o pedido de Jo para que Sam a deixe morrer, ele não se consegue controlar e, num ato de histeria, grita “Estou a morrer!”. A verdade é que, como diz Elizabeth, “Sam, não sabes o que isso é”.

Inexistindo a pessoa doente, o seu cuidador desaparece.

Neste movimento da luz para a escuridão, da aparente alegria para a angústia, da ordem para o caos, da conversa corriqueira para o calão, da paciência para a irascibilidade, apenas uma coisa se mantém constante: Sam só existe enquanto referente a Jo, a sua identidade é totalmente entregue à condição de um outro. Inexistindo a pessoa doente, o seu cuidador desaparece.

Na verdade, aquele que corre para a morte, não o faz sozinho. E as fases do processo de doença e de morte, segundo o modelo de Kübler-Ross (negação e isolamento, irritação, negociação, depressão e aceitação), devem ser aplicadas também ao cuidador. A arte de bem morrer vem acompanhada da arte de bem deixar morrer. O que vemos na peça de Albee é de um realismo brutal, no sentido cru da palavra. Enquanto o doente aceita a sua finitude e fragilidade e, inevitavelmente, a morte, o cuidador mantém-se em negação, irritação e negociação. Não é incomum ouvir-se por parte dos familiares “faça tudo para que ele viva!”, “não o deixe morrer que ainda não chegou o seu tempo”, “não estamos preparados para que ele parta”. Durante momentos, o sofrimento e a inegável condição da pessoa doente parecem ser desvalorizados, em prol daquele que, enquanto cuidador, não sabe lidar com a partida de quem está ao seu cuidado.

Se o sentido da vida e a identidade de um cuidador passa pelo cuidado da pessoa doente, não pode ser aqui encerrada. Caso contrário, inexistindo a pessoa cuidada, desaparece o cuidador, tal como Sam.

Da morte não se fala, esse monstro gigante. É deixá-la no seu túmulo e lidar com ela quando vier o tempo. Aquele que não leva a sério as palavras de Sócrates, não leva a sério a própria vida e a vida daqueles que lhe são próximos: “viver é preparar a morte”. A morte não se prepara quando aparece, mas prepara-se em vida. Por isso, é necessário que a morte faça parte dos nossos jantares, que nos sentemo à mesa com ela, não sozinhos, mas em grupos alargados ou em família. Ela, não sendo o fim, é parte integrante da vida e, por isso, é importante que dela se fale. Quanto mais no escuro se guardar a morte, mais ela cresce e, um dia, aparecerá na forma de Elizabeth, juntamente com um tanto de confusão, irritação, incompreensão, negação, e outras formas angustiantes. Se nos disponibilizarmos para a conhecer antecipadamente, será uma boa amiga que, a tempo oportuno, virá para nos levar a nós e aos nossos entes queridos.

É necessário que a morte faça parte dos nossos jantares, que nos sentemo à mesa com ela, não sozinhos, mas em grupos alargados ou em família.

Resta-me dizer que esta reflexão não surgiu inteiramente da minha cabeça e experiência enquanto médico jesuíta que vai ao teatro. A ida ao teatro, para ver “A Senhora de Dubuque”, apenas terminou após uma longa conversa com um dos atores com quem me cruzei junto à porta dos artistas. Apenas lhe fiz uma pergunta, “na perspetiva de quem está dentro da peça, de quem a vive, de quem a representa e acompanha, quase como cuidador da peça, qual é a tua interpretação desta?”. Feita a pergunta, remeti-me ao silêncio, para depois, no fim de uma excelente reflexão que tanto agradeci e que em grande parte escrevo aqui, apenas lhe recomendar “não deixes que esta peça te consuma! Se não, morrendo ela, morres tu!”.