Homero ensina-nos a acolher!

Da própria experiência, assumida e agradecida, surgirá a mudança e, adestrados dos meios tecnológicos, podemos procurar criativamente re-ritualizar as relações. Temos os Gregos como ajuda!

A Odisseia versa sobre o regresso de Ulisses a Ítaca e as desventuras da sua ausência prolongada; esta é a sua narrativa e o foco textual de Homero. Subliminarmente, porém, é um tratado sobre relações humanas que oferece um código de conduta (através de exemplos e contra-exemplos) para as relações familiares, as relações diplomáticas e, sobretudo, para o tratamento dos estrangeiros – a hospitalidade.

A hospitalidade está patente em toda a obra. Não me arrisco a uma análise minudente dos episódios todos que descrevem esta prática; há já sobeja literatura sobre o tema, feita por gente muito mais capaz que eu. Apenas noto alguns traços que me parecem relevantes:

1. O costume grego de hospitalidade era primeiramente visto como um culto espiritual, não se restringia aos domínios humanos. O acolhimento dos estrangeiros procedia da crença que os próprios deuses se disfarçavam para visitar os homens. Acolher um estrangeiro poderia significar estar a acolher um dos deuses; acolhê-lo bem significaria conquistar o seu favor.
Encontramos este traço marcadamente quando Ulisses se questiona acerca dos Feaces: “Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?/ Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?” (Od. VI, 120-121). Perguntas cuja resposta surge no Canto VII, com o acolhimento generoso dos reis Antínoo e Arete.

2. A hospitalidade deveria estender-se a todos os hóspedes, independentemente do seu estatuto social ou da sua aparência. Um rei deveria acolher um mendigo ou um dignatário com igual dignidade; o mesmo é válido para um anfitrião pobre. Esta prática gerava uma espécie de amizade social, um cuidado mútuo para lá da estratificação social.
O acolhimento do porqueiro Eumeu ao mendigo Ulisses, no Canto XIV, é disto um exemplo: “Estrangeiro, não tenho o direito (mesmo que um pior que tu/ aqui viesse!) de desconsiderar um estrangeiro: pois de Zeus/ vêm todos os estrangeiros e mendigos; e a nossa oferta,/ embora pequena, é dada de bom grado.” (Od. XIV, 56-59).

3. A prática da hospitalidade estabelecia um vínculo duradoiro entre hóspede e anfitrião. A hospitalidade oferecida a um hóspede não era tida como um evento isolado, mas forjava um elo entre os dois comensais e as suas descendências, na esperança de uma benevolência recíproca.
Vemos esta aliança temporal nos vários episódios em que Telémaco é acolhido, em atenção aos feitos de seu pai Ulisses, especialmente na sua visita ao rei Nestor: “Que tal coisa impeça Zeus, e todos os deuses imortais,/que vos dirijais de minha casa para a vossa nau veloz,/como se de um pobre sem roupa vos afastásseis (…)/Nem irá o querido filho deste homem Odisseu/ deitar-se nas tábuas de uma nau, enquanto eu viver…” (Od. III, 346-348;352-353).

 

Em oposição, os pretendentes de Penélope são-nos sempre apresentados como um contraexemplo: não se preocupam com a boas práticas da hospitalidade, invadindo uma casa que não é sua e devorando os bens da casa de Ulisses; maltratam os pobres (cf. Acolhimento do mendigo Ulisses in Od. XVII) que pedem guarida ou alimento, apenas se ocupando da sua satisfação; desprezam toda a família de Ulisses (Penélope, Telémaco e Laertes), apesar de serem recordados da benevolência deste para consigo. É este desrespeito pelo costume sagrado da hospitalidade que precipita a fúria dos deuses, abatida sobre eles pelo regresso de Ulisses no Canto XXIII.

Qual a relevância disto tudo? Em que é que saber das práticas de hospitalidade dos gregos vai ter algum benefício para a nossa vida?

Numa qualquer relação interpessoal, a conversa “de circunstância”, normalmente propiciada por uma momento inespecífico, partilhado com um grupo, precede a conversa pessoal mais directa entre duas pessoas; por sua vez, esta relação ainda superficial precede a entrada em casa, no espaço íntimo. O mesmo poderíamos dizer considerando a distância física: do aperto de mão passamos ao beijinho circunstancial, depois ao abraço e daqui às expressões mais íntimas de afecto físico. Nas várias dimensões de que se compõem as relações humanas, há uma sucessão de distâncias, todas elas são necessárias para que o laço que nos une ao outro não seja truncado, que nos vão familiarizando com um outro que nos é estranho. Esta é a nossa prática quotidiana da hospitalidade!

Parece-me que a comunicação digital veio acentuar os extremos da distância. Colocando-nos atrás dum ecrã, deu-nos maior entrada na intimidade do outro; tirando-nos da normal evolução, dos passos fastidiosos do acolhimento, fez-nos saltar de paraquedas para um terreno sagrado, sem fazer o caminho necessário para o valorizar enquanto tal; e assim permanecemos infinitamente longe da verdadeira intimidade. A perda dos passos intermédios remove significado e consistência às nossas relações, fragiliza-as, volatiza-as, desumaniza-as.

A hospitalidade grega era uma forma de delicadeza que superava toda a hierarquia e estratificação, forjando uma espécie de amizade universal que sustentava as relações entre pessoas, povos, culturas e nações. O acolhimento passava por oferecer o básico: comida, roupa, guarida e relação, fazendo sacrifícios de gratidão aos deuses (as chamadas libações). A oferta vinha sempre associada ao desejo de conhecer o outro, para lá do carácter fugaz ou extemporâneo do encontro.

Os tempos que agora vivemos obrigam-nos a distâncias redobradas e, inevitavelmente, exponenciam esta fragilidade relacional. Tenho-o vivido como tantos e tantas que se sentem acossados pela solidão, desesperados por poder trocar dois dedos de conversa ao vivo (agora já é sempre a cores) e cheios do desejo de não ouvir sempre uma voz saída duma coluna. Ainda assim, a intempérie viral que nos assola não veio estrear nada neste domínio; apenas nos fez subir um degrau de intensidade e deflagrou o que já cá estava latente, esticando a malha da nossa existência pessoal e social a novas tensões – e bem sabemos o que acontece quando esticamos um tecido rasgado!

O apelo que intuo, nesta revisitação da Odisseia, é a re-ritualização das relações, recuperando os entremeios. Não consigo avançar uma fórmula certeira e longeva, a minha formação médica faz-me resistir a soluções do tipo “penso rápido” para esta síndrome sistémica. A Grécia pode porventura ser um bom ponto de partida ou, mais ousadamente, um bom referente para o nosso imaginário. Seguindo os Gregos, os gestos com que acolhemos o outro não serão apenas gestos ou costume, mas formas de abertura ao que transcende, verdadeiros rituais. Evitaremos as celebrações espalhafatosas e estocásticas, mas poderemos suscitar laços que se desenvolvem e florescem no tempo. E esta forma de relação pode expandir o nosso universo de relações para lá dos mundos onde normalmente nos movemos, num impulso de abertura universal ao outro.

Difícil como seja pôr em prática muitas destas mediações tão costumeiras num tempo de confinamento, por definição atípico e restritivo nos nossos contactos, ensaiemos tentativas, esforços que nos façam próximos em tempos de reclusão! Estamos privados da dimensão física e esta dimensão molda terminantemente a nossa capacidade de relação– S. Tomás diz-nos que “nada está no intelecto que não tenha antes estado nos sentidos” (De veritate, q. 2 a. 3 arg. 19). Ainda assim, o espanto continua a ser um poderoso motor de transformação. É um desafio olhar e questionar, há desconforto em corajosamente inquirir os nossos hábitos e os nossos vícios, desafiando-os a dar provas de si. Da própria experiência, assumida e agradecida, surgirá a mudança e, adestrados dos meios tecnológicos, podemos procurar criativamente re-ritualizar as relações. Temos os Gregos como ajuda!

 

 

Foto: Hombre, Unsplash