Estender a Mesa

Houve quem tenha estado na cozinha; houve espaço para conversas, memórias e gargalhadas; e tudo isto foi bom, foi um paliativo. Mas a digestão faz-se na recolha.

Já passou o tempo de Natal, mas pode ainda haver alguma digestão das festividades recentes fazer. Certamente que, neste ano peculiar, não celebrámos da maneira habitual; com a parafernália costumária ou o largo convívio familiar. Ainda assim, a mesa partilhada foi um centro, um elemento simultaneamente aglutinador e propulsor de novas conversas, de interacções que, doutra forma, poderiam não se dar. Para lá de tudo o que possa dizer, a experiência mostra na mesa este poderoso efeito promotor da comunhão, que sentimos e nos habituamos a sentir.

À primeira vista, as conversas e o ambiente à volta da mesa do Natal podem parecer fruto daquela circunstância, do humor dos comensais, da alegria de poder partilhar, conversar e escutar – todas estas ocupações muito nobres e humanizadoras! Mas, se cuidarmos este nosso olhar, veremos que esta festa não é uma singularidade que se estende no tempo, mas o culminar de um processo feito de um tempo preparatório, de uma ceia saboreada em comum e de um espraiamento enriquecedor.

A preparação

A alegria duma mesa não surge do nada, por geração espontânea. Requer preparação lenta, artesanal, capaz de dar alguma expressão à profundidade do momento passado em comum contém. A ausência deste ensaio é capaz de produzir stress, cansaço e agravo, por vezes em níveis que, mesmo havendo alegria, esta se torna sensaborona. Por isto mesmo, uma Avó passa largas horas preparando a refeição do Natal, os familiares procuram uma farpela adequada para o evento, ensaiam-se perguntas e temas de conversa. A preparação nutre-se dos afectos que nos atraem aos outros, do desejo de comunhão e duma certa forma de imaginação que nos amplia este desejo. A mesa prepara-se também pela fome!

A capacidade de sentir fome é algo que nos diferencia dos animais. Estes, desejando alimentar-se, ocupam-se de responder a este impulso e apenas o contariam quando outra reacção programada (como o jejum parental de tantas espécies em detrimento dos filhos) assim lhes comanda; ao invés, o Homem é capaz de sentir este impulso e não lhe dar resposta, subjugando o impulso pela vontade. Assim, a fome – e não me cinjo aqui apenas à fome corporal, mas também ao desejo afectivo e relacional, à carestia espiritual – é humanizadora na medida em que nos obriga a usar da liberdade, que nos define enquanto homens e mulheres.

Mas não relego a preparação exclusivamente para a dimensão individual, até porque a preparação de um encontro é, antes do mais, um acto comunitário em que confluem vários desejos. Para tantas crianças, o primeiro gesto de ajuda aos pais é pôr a mesa em casa. A banalidade deste gesto, a sua repetição quotidiana, pode tolher-nos o espanto no que aqui se faz. Mas atentemos: um miúdo aprende de um graúdo, diante duma mesa vazia, a preparar um encontro em que partilharão simultaneamente um alimento e a sua vivência. Esta é a experiência de tantas pessoas pelo mundo fora. Pedagogia, fraternidade e colaboração sentam-se à mesa neste gesto tão singelo de ordenar pratos, copos e talheres.

O encontro

A preparação, em si mesma, nenhum valor teria sem o encontro que lhe confere sentido. O tempo e o lavor ganham sentido no encontro do outro, na sua vida concreta, no que dou e no que recebo; a partilha física, do alimento e do espaço, ganha novo significado pela relação que a estrutura e expande o seu sentido meramente corporal. Mais que um lugar de alimentação ou de fruição, a mesa é espaço de comunicação e, por isto, espaço de comunhão. Podemos observar como esta comunhão se dá num ritmo comum em que cada um se pode expressar sem atropelos: quando alguém fala demais, um outro fica sem espaço; quando um come demasiado devagar, arrasta o normal fluxo do tempo e da atenção. Este ritmo não se resume à fusão dos ritmos individuais; não é apenas uma amálgama encavalitada de sujeitos que partilham uma circunstância. É precisamente o vencimento desta circunstância e a superação desta individualidade o que forja o compasso comum de uma mesa.

Estar à mesa, porém, não se faz só de conversas; até pelo que já disse acima, há uma componente física essencial, o alimento que compõe a refeição. Esta é a topografia em que as conversas tomam o seu curso; sem terreno, não é possível desenhar mapas nem caminhos. Mas esta materialidade tem, em si, algo de extraordinário: os alimentos consumidos, pelo acto da digestão, perdem-se e transformam-se em substância daquele que os consumiu primeiramente; e também este se altera, na medida em que incorpora em si um novo elemento, um novo acidente. Ocorre, em certa medida, um câmbio ontológico nos que se sentam à mesa e se alimentam. A mesa, não sendo um sacramento senão quando no sentido Eucarístico, desvela o seu carácter inerentemente sacramental. Quando dois se sentam juntos partilhando o pão, partilhando as suas vidas, há uma transformação que se lhes imprime e que enriquece.

O prolongamento

O verdadeiro encontro que se gera em torno duma mesa não se circunscreve a esta geografia. A mesa não é uma demarcação estanque, mas o ápice nesta celebração de relações e de partilha. O isolamento da mesa no tempo conduz-nos a uma redução funcional, aos gestos alimentares e à conveniência de nos aglomerarmos, cuja limpeza de contornos é incapaz de descrever o enorme milagre dum almoço de família ou dum jantar de amigos. As conversas, discussões, silêncios e escutas que sucedem à mesa são as flores que despontam das sementes de alegria que aí se plantaram e perfumam já o ar. Uma mesa muda gera conversas mudas, uma mesa alegre gera festa, uma mesa íntima abre conversas próximas.

Esta transformação é sobretudo interacção e acolhimento da alteridade; nela surgem mudanças, apelos de uma consistência maior que o fugaz impulso ou a sensação. A mesa prolonga-se nas conversas e não são poucas as vezes em que, por termos partilhado uma refeição, conhecemos melhor um amigo; porque juntos nos expusemos à transformação, à “incorporação” do que não era nosso, mas nos enriquece. E, mais nos conhecendo, amamo-nos mais. Vemo-lo no clássico filme A Festa de Babette, naquela aldeia seca e reprimida em que a reconciliação desponta dum largo jantar.

Visualmente, há um paradoxo neste enriquecimento: à medida que a mesa se vai esvaziando e desnudando, a relação vai-se espessando, como uma trama que se espessa em filamentos delicados. A densidade da trama que nos liga a um outro é o afecto, que se nutre destes momentos comuns em que se encerra uma experiência vital. Talvez o momento mais fundamental, o que mais fibras tece neste pano afectivo, seja a arrumação. Quando arrumamos uma mesa depois de um jantar, estamos a restituir o espaço à sua funcionalidade original, mas estamos também a recontar sincronicamente o que ali experimentámos. A recolha destas experiências leva-nos à consciência do seu valor e, ultimamente, à gratidão. Por isso, é de igual ou maior valor pedagógico aprender a levantar uma mesa com os mais pequenos, porque isto ensina concretamente a agradecer.

Porque é que me debruço extensamente sobre a mesa? Faço-o por sentir que, nestes, podemos ser atacados duma amnésia selectiva, instilada de nostalgia ou desses vapores acres do cansaço, capazes de distorcer o essencialmente o enriquecimento que recebemos nas nossas mesas de Natal. Houve quem tenha estado na cozinha; houve espaço para conversas, memórias e gargalhadas; e tudo sito foi bom, foi um paliativo. Mas a digestão faz-se na recolha, na rememoração que acontece como quando, em volta da mesa despenteada, levantamos os copos que levara o vinho da alegria da noite anterior.

 

Foto: Brooke Lark, Unsplash